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Crônica

Marcas

Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 13/07/2019 às 05:18

(Foto: Pixabay)

Voamos sobre o Nordeste. Comemos refeição requintada na aeronave. Fico a pensar na região onde a fome impera. Dá-me ganas de jogar a refeição do lado da poltrona à direita. Ninguém a ocupar o assento. Olho para os passageiros absortos em suas refeições. Saboreiam o prato quente com estupor. Abro a cortina da janela do avião. Quem dera pudesse abrir a janela e jogar esses alimentos. Sei que lá embaixo há meninos e meninas a ver o piscar das luzes, sonhando um dia estarem aqui. Um ponto pequenino a iluminar a imensidão do céu. Recordo-me da adolescência na varanda da casa de mãe: luzes a piscar; pensamentos de estar a voar junto às nuvens e às estrelas. A fome não fazia parte do sítio em que vivíamos. Todos a sorrir e a esbanjar cores coradas na face. Andávamos de bicicleta ou simplesmente sentávamos na varanda para ouvir música da vitrola. Sonhávamos. Pensávamos que o mundo girava a nossa volta e a nosso bel-prazer. Mundo de adolescente é sonhar sem medos ou amarguras no amanhã. Amanhã seria mais um dia a se despertar azul. Trabalhar, estudar, ler, conversar com amigos, irmãos e pais. Problemas ou agruras não faziam parte, ainda, do cotidiano, enquanto o tempo seguia seu rito: para frente, impávido e a prosseguir. Perco-me em lembranças, enquanto espio a janela do avião: há lá embaixo meninos e meninas que guardam o sonho de estar onde estou. Quem sabe mais cedo do que eu? Quem dera se não tivesse que passar por privações e sofrimentos.

O comissário avisa para apertar os cintos. Área de forte e larga turbulência. Não tenho medo nem preocupações. O foco é o pavor de perder o colo materno, mas a esperança se renova nos despertares.

Abro a bolsa. Leio trechos de uma escritora portuguesa que propõe ao leitor, dar-lhe pistas para encarar a vida. As palavras me soam piegas e fracas. Estou a exigir dela a fórmula mágica do consolo e da aceitação de algo que será quitado com o decorrer do tempo. Ninguém fica na sementeira. Meu corpo se arrepia com o ar condicionado gelado.

Vivo num momento de estupenda amargura. Nervos e ansiedade à flor da pele como raio a cortar o céu em dias de forte tempestade. Agora, nada de superação, palavras de consolo; apenas resiliência. Enviuvar é algo impensável para os que amam fervorosamente, apesar da finitude do invólucro carnal. O medo é algo que nos cutuca diariamente feito ponta de seringa, provocando dores dilatadas.

Passamos pela turbulência. Meninos e meninas ficam para trás, embalados em sonhos a piscar feito estrelas. Olho ao meu redor. Uns dormem tranquilamente, crianças choram, um casal de idosos ao meu lado, de mãos dadas. Quem me dera estivessem aqui os meus...

As amizades portuguesas e a jornada Luso-Tropical ficam para trás... Não se apagam do outro lado do atlântico. Fortificam-se com o passar dos anos. A saudade está a soprar levemente, mas todos estão bem, pois não se isolam nem se fecham para o mundo.

Pai e mãe são marcas que se eternizam; educam, acalentam, estruturam, amam, ouvem e mostram a melhor via. Não fazem parte a vida inteira da sementeira, a não ser em recordações, expressões, manias e gestos... Meu pai, estrela; minha mãe, olhar miúdo a me mirar...

Estou a regressar com aflições e pontos de desequilíbrio. Nada a ser dito que não pudesse ter dito. Nada de abraços e afagos deixados para trás. Nada a ser reparado ou perdoado. Muito a ser contato e compartilhado. Muito a ser sonhado, idealizado, planejado... Sinto sua vivacidade se exaurindo por meio de máquinas. Silêncio grita no peito arfante. Respiração se intensifica com passos e afagos. Ela quer se interagir a todo custo. Sinto. Acaricio seu rosto bonito. Penteio seus cabelos finos e sedosos, com as pontas dos dedos. Sussurro. Ela aperta minha mão, abre os olhos por parcos segundos.

O presente se faz assim, indecifrável, fugindo da palma da mão. Apago a luz da poltrona. Fecho os olhos marejados. Tudo passa, como passará o sonho daqueles guris, que correm atrás das luzes que piscam no céu. Um dia serão também luzes pequeninas a brilhar feito o amor coletivo e interpessoais cravado no peito.

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