Portal da Cidade Mariana

Crônica

Amanhã

Confira a crônica de Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 26/07/2020 às 03:05
Atualizado em

(Foto: Pixabay)

Ouvidos bailam nos acordes de gritos e latidos. Dia vagaroso, sol esmaecido coberto de nuvens esparsas. Não chove há mais de mês. Flores se despontam no chão íngreme de terra batida. Coração derrama saudade. Despeço-me de sentimentos de ira e vaidade. Parei de pintar há algum tempo; barulhos podam meus sentidos. Criação é portal aberto para dialogar com o divino. Ouço ruídos. Uma senhora vocifera com pedreiros. Xingamentos e desatinos aos borbotões. Protesto e aglomeração de pessoas nas ruas. Desemprego, avanço de curva de crescimento de infectados e óbitos; começam os testes de vacina...

Fome, desemprego, pobreza, doença e morte em ascensão. Com isso eu me preocupo. Limpo chapéus empoeirados, organizo gavetas e prateleiras pela enésima vez. Infertilidade e tédio me consomem. Olho a folha imaculada: nada a prever, a não ser nostalgia. Neurotransmissores potencializados com antidepressivos. Insônia acende noites. Bicicleta ergométrica encostada na parede, aquisição para minha coleção: inutilidades. Adquiro outra neurose. Quantos loucos deixaram de circular? Colocaram fogo na mata! Tenho dó. Lixo acumulado nas caçambas é igual a quanto de vírus recolhido? Cães fazem serenata no final do dia. Saudade das borboletas que bailavam no jardim de casa. A gente sente falta das coisas que faziam lembranças boas virem à tona. Perdi a liberdade de ir e vir, mas aprendi a aguçar meus sentidos. Sirenes de ambulância na rodovia. Quantos leitos de UTI? Também com isso eu me preocupo. Desligo a televisão para mirar o arrebol. Sol se esconde no horizonte. Quisera surgir e sumir. Fecho a porta da varanda. Deixo os mosquitos entrarem. Que companhia útil para minhas lamentações. O que seria do rosa se todos gostassem do branco? Observo os livros empilhados na prateleira. Amanhã vou ler mais um capítulo. Uma estória boba, ei de escolher. Há vantagem em ser bobo. Clarice disse que o bobo tem tempo para ouvir e sabedoria para viver. O bobo, apesar de nunca ter tido vez, pode ser, muitas vezes, o bobo de um Dostoievski...

Só percebi que os passarinhos vieram, porque a canjiquinha do armário acabou. Tenho tempo livre para deambular com a preguiça e a paciência dissimulada. Aglomeração na casa de baixo. Barulho de sirene da polícia. O bobo de cima denunciou o espertalhão de baixo. Ligo a televisão. Caminho para a varanda. Nenhuma alma viva na rua. Ar frio. Luz de poste queimada. Mais um dia quase findo. Fiz nada. A senhora conversa com alguém no telefone. Reclama da filha, casa, solidão, dor. Eu me importo. Um galo solitário canta. Barulho de motocicleta; choro de criança. Fecho a porta da varanda. Desligo a televisão. Observo minhas mãos ressecadas. Tremem mais. Não me preocupo com as marcas da velhice.

Amanhã, talvez, os cães não façam serenata no final do dia, os passarinhos não venham comer canjiquinha, a senhora não xingue os pedreiros... Amanhã, sem orientação de satélites, só previsão.


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