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Crônica

As aparências enganam

Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 04/05/2019 às 23:19

(Foto: Google Imagens)

Ainda não tive medo do corriqueiro exame de sangue. Apesar de a ansiedade pairar em alguns poros do corpo, o exame nunca me causou pânico; nem na adolescência. Na infância, não me recordo. Tento tirar informação de mãe que não se lembra, também. Menos pior, pois tenho impressão de que nunca tive medo de uma picada de agulha. A espetada leve e veloz, não dói, e não dói mesmo! Dói é aguardar um punhado de senhas serem chamadas, por aquele aparelho que apita em seu ouvido, enjoativamente. Mais aborrecedor focar atenção na tela que exibe senhas em ordem crescente.

Quando o laboratório tem TV, um olho e ouvido no programa, outro olho e ouvido na tela. Caso a pessoa seja habilidosa em desviar a atenção de uma coisa para outra, um olho na tela, outro na TV e outro (já é o terceiro, que não existe!) no celular. Meus sentidos não têm tamanha habilidade para fazerem tanta estripulia e malabarismo. Ainda mais de manhã, quando o metabolismo está mais lento. Para não observar excesso de ouvidos e olhos de pessoas habilidosas em dividir foco na TV, na tela e no celular, melhor opção é ir ao laboratório no sábado.

Quem gosta de levantar cedo nesse dia? Quem trabalha de segunda a sexta, costuma acordar mais tarde no sábado. De modo que encontrarei poucas pessoas na fila. Fluxo lento. Nada fora da anormalidade maluca do cotidiano. E vai doer nada, acordar num sábado a cada seis meses, para fazer exames de rotina. Desperto assustada. Relógio não despertou, mas cônjuge me acorda. Dou um pulo da cama, e em poucos minutos, estou pronta.

Nenhuma fila ou congestionamento de carros nas ruas, mas um punhado de copos e lixos infestando a praça mais tradicional da cidade. Quanta lambança! Quantas pessoas emporcalharam o cenário urbano! Que se danem o patrimônio e o ambiente pela manhã! Também pudera, esses seres devem ter deixado copos de plástico caírem de suas “mãos quebradas, velhas e furadas”, para conseguirem dividir atenção com colegas, celular, bebida, cigarro, música, carros… Tem razão de não prestarem atenção em seus gestos escalafobéticos ao jogarem lixo nos passeios e jardins das praças! Talvez precisem fazer exames de sangue, para conseguirem diagnosticar suposta falta de firmeza nas mãos; e trabalhos voluntários de apanhar copos e lixos de praças, para tomarem consciência. Uma câmera revelaria os infratores, que seriam convocados para realização de atividades. Penso nestas eficientes campanhas educativas que viriam a calhar, até chegar à porta do laboratório.

Do carro, vejo o interior. Comemoro: uma pessoa! Entro vagarosamente. A atendente me chama, de chofre. Tiro os documentos da bolsa. Ouço uma criança chorando alto. Paro de falar. Eu e a atendente procuramos o autor daquela lamúria disparatada. Menino de cinco anos, magrinho, mas com força descomunal no pulmão para libertar o berreiro. Vai entrar na agulha e está em pânico, o pobrezinho. Que potência para o choro! Voltei à atendente para finalização protocolares. Sentei. A criança parou de chorar, enquanto sua mãe foi chamada. Conversei com o menino sentado ao meu lado.

“Não vai doer, tá? É só uma picadinha. Vou antes de você. A agulha vai estar macia, quando chegar a sua vez! A moça que faz o exame é muito boazinha!”
“Jura, mesmo?” Disse limpando os olhinhos.
“Claro que sim! Daqui a pouquinho, a moça vai me chamar. Se eu chorar, e você escutar, é porque doeu um pouquinho, mas se não escutar nenhum choro é porque não doeu nada! Tá vendo o moço que acabou de sair? Ele não chorou! Não dói, meu amigo!

A mãe me agradeceu, enquanto fui chamada pela nova enfermeira. Gorda, alta, peito largo. Metia medo. A criança perguntou se ela era a moça boazinha. A mãe consentiu. Eu tive dúvida. Fui para a sala de coleta, começando a ficar temerosa, não pela agulha, mas pela opulência daquela mulher. O menino ia fazer o maior escândalo. Ela começou a cantarolar baixinho, enquanto pegava a agulha. Voz doce, meiga e afinada. Perguntou-me se estava tudo bem; se a posição da cadeira era confortável. Nenhuma atendente nunca me disse aquilo. Ela perguntou se eu gostava de sarau.
“Sarau? Claro, gosto muito, sou escritora! ”

A atendente achou o máximo, e falou que adorava ler os poemas de Cecília, e as crônicas de Clarice.
“Hoje é só você aqui?”
“Sim. Sábado é tranquilo. ”
“E quando chegar a hora daquela criança? O que fazer?”
“Vou colocar nariz, chapéu e peruca de palhaço. Agulha de criança é bem menor. Depois que o menino estiver calmo, a gente faz o exame. ”
Atendente meiga, nada combinando com seu corpo de porte atlético. Aguardei o menino ser atendido, na sala do café ao lado.

A atendente fez algumas brincadeiras engraçadas, tirando sorriso da criança. O choro se transformou num murmúrio quase inaudível, quando a agulha tirou sangue do braço, que iria fazer uma viagem no frasco de vidro.
O menino saiu com um pirulito nas mãos, sorrindo para mim. Aquela enfermeira, quase um guarda-roupa, tinha a alma delicada feito brisa, que sopra vento delicado do mar para a terra. Naquele sábado, fora da anormalidade maluca do cotidiano, retornei para casa, mais certa de que as aparências, ah, certas aparências, enganam feito uma pegadinha!

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