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crônica

Basta um novo rumo na conversa

Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 12/04/2019 às 21:10

(Foto: Google Imagens)

Perdi algum detalhe poético caminhando pelas ruas de cabeça baixa. Vias apinhadas de carros. A Primaz não suporta o atual tráfego de automóveis. Motoristas estressados, motoqueiros que mal esperam transeuntes atravessarem na faixa. Hoje, por infelicidade minha, peguei um taxista que xingava Deus e o povo. O mau humor exalava de sua respiração e olhos esbugalhados. Tagarelava ininterruptamente. Reclamou da esposa, da comida, do trânsito, da crise, das parcelas do carro, do cachorro, do filho, do colega que acabara de dar uma batidinha com as mãos em seu veículo.


Senhor aposentado de empresa, que precisava se aposentar do cargo de motorista. Ora, pois! Rabugento! O estresse consumia suas entranhas. Olhei para o lado, enfadada com o discurso reclamatório. Ninguém merece escutar tanta lamúria, enquanto eu perdia o encanto de visualizar árvores floreadas, que rodeavam a cidade. Ninguém merece ouvir vozearia de um senhor que não escutava o passageiro. Fingi não ouvir. Emudeci. Tentei me concentrar no verde das plantas, na cor azul do céu. As cores ajudam a acalmar os neurônios. Apreciei árvores; pessoas de mãos dadas com miúdos caminhando pelas ruas estreitas. O clamor continuou. Tive vontade de descer correndo, com o carro em movimento.


Hoje não é meu dia, não é!  Enfrentei fila colossal no banco. Caixas eletrônicos em manutenção em horário de rush. Clientes reclamando. Funcionários estressados. Banco com velhos problemas. Quem merece passar de caixa em caixa, para depois desistir? Tecnologia burra, que nos deixa na mão! Mas nem todos se enfurecem com as tabacadas tecnológicas. Celulares nas mãos, indicadores em pleno funcionamento, digitam mensagens, sem parar. Foco em outra máquina, já que as de transações bancárias deram pau. Esta é a expressão: dar pau. Sou mesmo do século passado, da era digital. Garotos e garotas: da pós-digital.


Sem agilidade, vou respondendo em ritmo de tartaruga, mensagens no WhatsApp. Apago vídeos, receosa de meu celular dar pau, com memória cheia de baboseiras. Humor curto para lengalengas. Boy atrás de mim me chama de tia. “Tia é comadre de sua madrinha”. Dou um sorriso amarelo. Penso maldosamente: “Tia é sua tia, pirralho de camisa com a barriga de fora, vestindo calças curtas exibindo box vermelha”. Moda, isso é moda, analiso, me chamando de velha atrasada. Não tenho que acompanhar a moda, muito menos engoli-la goela abaixo. Meu estilo é quadrado, fechado; às vezes, colorido, despojado, dependendo do estado anímico. Cada qual com seu pensamento e forma de se portar, vestir e por aí vai.


Saí do banco sem cumprir demandas. Tudo dando pau. O rapaz do banco diz: instabilidade, instabilidade... Instabilidade, o diabo! Instabilidade é meu humor, que não consegue ver tantas máquinas com defeito, defeito e defeito. Instabilidade é do banco, de quem é responsável pela manutenção. Cadê os especialistas dos caixas eletrônicos? O povo merece esperar a boa vontade dos responsáveis em extinguir o problema? Extinguir é demais. Nunca conseguiram aplacar o vento, não é agora que conseguirão solucionar a parafernália que o homem criou. A tecnologia é bem-vinda. Não nego. Mas quando dá pau, a desordem é estratosférica, como diz um velho amigo. Gostava do vocábulo e repetia-o com pompas e circunstâncias. Leu um livro na vida. O vocábulo surgiu de uma saga, que ele decorou fervorosamente. “E é bonita a palavra: ESTRATOSFÉRICA”. Concordei. Melhor ler um livro na vida, do que não ler nada. Cabra inteligente, cheio de aforismos, piadas, estórias e um pouco de bronquice.  Tentei incentivá-lo a ler mais, mas a desculpa era sempre a mesma. “As vistas não veem direito”. “Tenho preguiça”. “Meu serviço é enxada e terra, o seu pena e livro”. “Respeite o velho”. E tinha que respeitar. Ele se recusava a espiar celulares, computadores e as parafernálias tecnológicas. E lá ia ele, de bengala, subindo as escadas do banco, a enfrentar fila prioritária, para receber a merreca da aposentadoria. Não aceitava ajuda. Cabra esperto dentro de sua expertise de ter nascido antes da era digital. Tudo na mão, com letras bordadas, daquelas de dar inveja.


Absorta nesses pensamentos no meio do caminho, em meio aos queixumes do senhor, a compaixão veio à tona. Olhei-o atentamente. Olhar opaco. Mãos calejadas seguravam o volante. Óculos fundos de garrafa. Lembrei-me do amigo da era não digital. Aquele mau humor se explicava. Toquei o ombro dele. Ele parou de falar. Apontei para o jardim apinhado de árvores e flores. Apontei a cor espetacular do céu. Falei das engrisias da vida, do banco, de tudo ao nosso redor... Ele concordou com movimento de cabeça. “Que tal olhar a vida com mais poeticidade em vez de bombardeá-la com tanta ferocidade”? A tecnologia nos facilita a vida, às vezes, emburrece... Mas quem nunca se emburreceu? O aborrecimento faz parte da caminhada. Concordou. Parou de reclamar. Sorriu. Mudou o rumo da conversa. Falou do tempo em que era jovem. Tudo funcionava...   


O dia não deu pau. Meu detalhe poético não se perdeu, estava bem ao meu lado...

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