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Comemoração

Conhecer as memórias, valorizar a língua portuguesa, a história e o patrimônio

Patrícia Ferreira dos Santos Silveira - Doutora em História Social pela USP

Publicado em 06/05/2020 às 04:00
Atualizado em

A nossa linguagem e as nossas memórias produzem sentidos e classificações interessantes, sobre os quais refletimos pouco. Por exemplo, quando ouvimos que algo é lenda, pensamos sempre em uma classificação dela entre a verdade e a mentira. Isso é lenda! É um sinônimo de “isso é mentira”. Será?

O historiador, como estudioso da História, é também aquele que investiga, que busca lógicas e diferentes linguagens. Como um bom investigador, visa a pistas, que estão no jeito de falar e no jeito de contar uma boa história; pistas que estão no mistério das conversas que adentram madrugadas. O historiador não estuda apenas para reconstituir uma circunstância que passou, ou mesmo algo que acabou de acontecer, pois como disse Santo Agostinho, o tempo presente rapidamente se transmuta e se torna tempo passado. (Santo Agostinho. Livro XI - Confissões) Para reconstituir a História, o historiador investiga as fontes - ou seja, busca informação, pesquisa em livros e em documentos diversos, desde papéis, a monumentos, obras de arte e os códigos de permanência de costumes e crenças.

No estudo dos documentos, fontes da História, o historiador deve ser também atento e sensível às manifestações da memória – a individual e a coletiva. A memória é tudo o que nós recordamos, e tudo o que selecionamos para apagar e também para esquecer, seja em sociedade, seja em grupos ou em nossas lembranças e marcações individuais. A memória é, portanto, fonte de informação histórica. No imenso baú da nossa memória coletiva, dentre lembranças de acontecimentos bons e ruins que perpassam as nossas vidas, as de nossas famílias, e de nossa comunidade e cidade, pairam muitas histórias e lendas. Muitas não estão registradas, mas envolvem fatos tão marcantes que são transmitidas de pais para filhos, conformando uma tradição oral, e se perpetuam na memória coletiva.

Podemos entender, então, que muitas crenças, memórias e lendas são como espécies de raios X das mentalidades sobre muitas questões de religião e crenças, organização da vida e da sociedade. Muitas são engraçadas, outras são tristes, há as que são trágicas, e ainda, as assombradas. Como pairam no imaginário coletivo, as lendas não podem ser limitadas a categorias de verdade ou mentira. A leitura e escuta de lendas e memórias nos oferece fontes de informação para refletirmos como pensavam e se organizavam os nossos antepassados ou outras comunidades. Assim, nos re-conhecermos, e afirmarmos as nossas identidades cidadãs.

Por exemplo, Mariana, Ouro Preto e o Estado de Minas Gerais, desde a sua ocupação, sofreram muito com a exploração mineradora, com a escravidão, fomes, empobrecimento e muitos outros males e dificuldades. Esse movimento (que os historiadores chamam de devir histórico), na vida comunitária, exerceu um efeito profundo na memória, gerando múltiplas histórias, à guisa de explicação sobre fatos que marcaram. Muitas destas memórias e lendas até hoje ouvimos contar e assombrar. Elas não se perpetuaram no tempo por acaso. Se investigarmos, veremos que a maior parte foi e permanece sendo transmitida por gerações, demarcando a chamada tradição oral, que atribui sentidos e significações a muitos fatos, cunhando muitas expressões linguísticas, e até injúrias, como: “Excomungado!” – expressão que remonta a um tempo em que religião era assunto de Estado e Estado repressor, colonizador.

Essa quarentena a que todos estamos obrigados, devido à pandemia de COVID-19, pode se converter em um momento de guinada histórica, de reflexão e valorização dos nossos costumes e do imenso cadinho patrimonial que é o nosso país, e, mais de pertinho, a nossa comunidade. A História, a memória e as múltiplas linguagens – a popular, a erudita, a artística – compõem um rico manancial de aprendizado sobre o mundo em que vivemos.

Valorizar a História e as memórias e expressões populares significa (re)conhecer a importância do patrimônio imaterial. Esse conhecimento e valorização nos re-significa enquanto cidadãos, pois confere identidade e sentido de pertença comunitário, desenvolvendo maior senso de tolerância e progresso humanístico.

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