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CRÔNICA

Consciência do fracasso com o uso das palavras

Confira a crônica de Andreia Donadon Leal, mestre em literatura pela UFV

Publicado em 08/01/2020 às 22:15
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Ai, que preguiça! Tenho repetido a frase, mentalmente, feito Macunaíma. Ai, que calor dos quintos! A menopausa repercute ondas de calorões pelo corpo. Hormônios em falência, metabolismo desacelerado, pelos brancos, nervos à flor da pele.

Mulheres e seus volteamentos da idade. Somos fortes feito rocha, para dar conta de mil e uma demandas. Nascemos primeiro, não tenho resquício de dúvida.

O grito do vizinho perturba minha concentração. Criança faz pirraça; cachorros fazem coro à algazarra. Vou para os cômodos dos fundos. Barulho me atormenta. Vida frenética e estressada ao lado. Aqui é pura parcimônia, às vezes, entediante. Tenho vontade de consolar o miúdo que choraminga. Sentido está, eu sei. Mas as palavras consomem meu tempo. Amanhã, por certo, irei lá, sem falta. Talvez um brinquedo; quem sabe um carinho... Ei de pensar.

O céu se tinge de cinza escuro. Caminhões e carros passam na rodovia. Luzes alaranjadas de postes acendem e apagam. Fecho a porta do quarto. Nada me atrai, a não ser a preguiça.

Vou macular esta folha com algumas letras. Quem vai ler? "Esses livros têm muitas letras". A bíblia tem muitas letras; as teorias têm muitas letras. O que seria da tecnologia se não fossem as letras? O que "Papai" vai planejar para exterminar as muitas letras nos livros escolares? O que poderia acabar com os vocábulos? Botar fogo nos livros? Voltar com os pergaminhos? Escrever nas pedras? Que cenário apocalíptico!

Talvez determinar o número de páginas e caracteres que cada livro didático terá a partir de agora. São muitas letras para papai. Claro! Ensinar pelo twitter? Só 140 toques; poucas palavras! Ai, que preguiça!

Macunaíma morria de preguiçinha. Papai sofre de TPML (Transtorno Por Muitas Letras). Não ei de pensar numa solução para quem tem pavor de muitas letras. Os psiquiatras que mediquem. Os Assessores da Educação que solucionem os problemas dos livros didáticos. Papai sabe tudo! Os educadores, heróis de carne e osso, que se adaptem a inúmeras mudanças na área. Que lamento, meu Deus!

Papai transtornado quer eliminar os jornalistas, também. Jornalistas fazem narrativas; narrativas são compostas por palavras... Que gênio dos quintos dos infernos saiu das urnas!

Minha cabeça começa a doer. Pressão subindo. Tomo anlodipino. Cheiro de chuva. Relâmpagos, trovoadas. Luz apagada. Não tenho medo do escuro. O guri berra de novo. Deve estar assustado com os trovões. Separo um livro de literatura infantil. Se a luz retornar, dou-lhe hoje.

A literatura nos leva para outros mundos, outras vidas, novas experiências. Literatura é libertadora; acalma, ocupa o pensamento. A obra que separo tem poucas letras, muitas ilustrações, de fato. Para a categoria infantil, o livro é recomendado.

Creio que Papai não esteja fora de sintonia nem com raiva e inveja das palavras dos livros; talvez seja mórbido caso de tomada de consciência do fracasso com o uso das palavras. Diga-se: poucas e malfadadas palavras! Preparem-se, jornalistas...


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