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CRÔNICA

Difícil respirar nesse sufoco!

Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 29/08/2019 às 06:31

Os dias vão cinzentos, pintados de vermelho e alaranjado. A mata pega fogo. Chamas ensandecidas por todos os lados. Não só na mata, na rede. O discurso do ódio e da desinformação queima possibilidades presentes e futuras. A língua é chicote de fogo da alma e do corpo; o desequilíbrio emocional desqualifica a genialidade humana. Imagine o caos gerado pelos desequilíbrios de governantes desprovidos de inteligência? Imensurável o tamanho do estrago. Até a estrada está cinzenta, um perigo, especialmente nos finais de semana.

Há motoristas sem qualquer habilidade para rodovias, rodando inseguro e causando medo. Tempo cinzento. Fumaça sobe alto no mato pegando fogo. Sem previsão de chuva, o que me preocupa. Vêm tempestades... Fecho a janela do automóvel. Ligo o rádio. Mais notícia ruim. Morre escritora famosa, tenra idade. Fatalidade. Asma é um perigo. E o presidente ateia fogo nas relações internacionais. Minha alternativa é pensar em mais e mais poesia. A música popular, na voz do Chico, agrada meus ouvidos cansados de ouvirem asneiras. Fecho os olhos. Punhos cerrados e a expressão estressada relaxa vagarosamente. Olho para o motorista com embevecimento. Companhia constante.

Relembro bate-papo com alunos do ensino fundamental de um educandário. Crianças agitadas, curiosas, interessadas em saber sobre o processo criativo do autor, vida, obra, procrastinação, idade, dificuldades, status... Mirei os olhares repletos de vivacidade. Lembrei de minha infância repleta de sonhos, aventuras, inocência. O mundo girava ao redor de uma casa espaçosa, pais, irmãos, livros, escola e a praia da Costa. Infância bem aproveitada, feliz; futuro? Não fazia parte da ciranda dos temas das conversas infantis. Mazelas, caos, sofrimento, insensatez, mágoa - vocábulos que não existiam em nosso dicionário infantil.

Vida de moleque é saltar de árvore alta sem ter noção de que pode se arrebentar no chão; vida de moleque é viver 360 graus; vida de moleque é acordar gritando ou reclamando; vida de moleque é brincar com os colegas e irmãos até cair de cansaço; vida de moleque é obedecer e desobedecer a pai e mãe; vida de moleque é viver um dia após o outro sob a proteção dos responsáveis. Suspiro profundamente ao me lembrar de minha vida de guria, olhando a estrada abarrotada de carro, luzes altas e baixas se cruzando no asfalto. Quantas noites em largo aborrecimento. Não são as mortes repentinas ou esperadas que me entristecem. Não é a vida meteórica da escritora Fernanda, a quem conheci por alguns textos, que me choca.

O Homem lá de cima sabe o que faz. A obra permanecerá pulsando. A genialidade de quem tem domínio emocional ou que procura ter, se alastra. Procuro me fazer zen, mesmo diante das intemperanças do cenário político, familiar, virtual; da mata pegando fogo, dos índios sendo dizimados, da cultura, da educação, dos professores vilipendiados. A crudelidade é inaceitável. A desinformação produz arrogância. A teimosia é estultice. Vivemos numa democracia. Acredito piamente que somos livres, inclusive, para sermos burros, arrogantes, estultos, maniqueístas, cruéis, intolerantes, mas que sejamos brutos e monstros conosco e não com o outro, não com o país.

De tanto ver canalhices reverberando em rede nacional; de tanto ver a violência triunfar; de tanto ver prosperar a roubalheira na política; de tanto ver se agigantar a injustiça, a pobreza, a desigualdade; de tanto ver o triunfo de políticos parvos, tenho me desanimado demasiadamente. De tanto testemunhar a banalização do mal, do assassinato, da impunidade, da injustiça, chego a ter medo de caminhar pelas ruas. Hoje o dia não me apetece; amanhã, eu não sei.

O mundo não gira ao redor de uma casa esperançosa, da proteção integral de pais, do andar pela praia sentindo os grãos de areias sob os meus pés. Noite enfumaçada, rede social pegando fogo, cólera para todos os cantos. Difícil respirar nesse sufoco. Saudosista da infância. Saudade dos meus pais jovens. Saudade de um país mais igualitário, menos enlouquecido, desesperado. Nunca estivemos tão tristes, nulos, envergonhados e desanimados...

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