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CRÔNICA

Eles voltarão?

Confira a crônica de Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 23/01/2020 às 00:24

Deambulo pelas ruas de cá. Chuva prestes a cair. Recebo vídeo pela rede. Um guri de escola pública canta e dança, com desenvoltura. Rapaz desinibido, articulado "Cinco travestis foram passear, além das montanhas para brincar... vem o Bolsonaro e pá, pá, pá, pá... Cinco travestis não voltaram" e nem voltarão de lá.


Censura, cesura, mesura. Vocábulos parecidos são despercebidos pelo corretor automático. Mas equívoco é diferente de erro. Imprudente quem não revisa a mensagem, antes de teclar: publique-se.


O Ministério da Educação e suas (in)justificativas esfarrapadas. O que aconteceu com a correção do ENEM? Equívoco da impressora? Não é possível!


Deambulo pelas ruas de seixo rolado. Céu nublado. Águas vão cair daqui alguns segundos. Abro a sombrinha. Testemunho uma mulher xingar um edil em alto e bom tom. O vocábulo mais aprazível é safado. O representante do legislativo faz de conta que não ouviu. O rosto da mulher expressa raiva, revolta e embriaguez. Descalça e suja, segue resmungando.


Chuto poça d'água. Montanha brumosa. Os cinco travestis ficarão por lá, canta o escolar. Censura, espancamento, violência, intolerância. Liberdade de expressão limitada. Alguém do alto escalão aventou a pérola.


Que sede de arte, de livros, de criatividade e cultura! Cultura vai ser comandada por ex-global. Ela não! É minha opinião inicial. Que futuro prevejo nesse governo obscuro? Não é possível! Xingamento de lá e lá; desequilíbrio, descontrole e amadorismo. Equívocos aos borbotões.


Caem relâmpagos. Protejo-me em loja de brinquedos. Procuro jogo fonêmico. Procuro por todos os cantos, sem sucesso. Vou criar o jogo. Tenho a impressão de que meus vocábulos neste texto estão em fase terminal.


Passo pelo ex-jardim de Mariana. Tapumes recebem a primeira demão de tinta. O responsável reclama calor. Com uniforme de brim e blusa de manga comprida, difícil segurar tanto abafamento. Ofereço minha garrafa de água. Ele rejeita, educadamente. Prossigo, mas retorno antes de a chuva apertar.


Entro no táxi. Motorista transpira perfume. Observo-o de soslaio. Arrumado, calado, bem apessoado. Conheço a maioria dos taxistas. Esse é tímido, não puxa conversa nem dá prosseguimento às tentativas de diálogo. Dia chuvoso, abafado... Política difícil... O jornal noticiou... Tentei dialogar outras vezes.


Mirei a montanha neblinada; calada e pensativa com minhas pelejas. Olhos quase nublados. Os dias não têm sido fáceis; saudade de alguma coisa que ficou perdida no passado.


A gente era feliz e ainda podia reclamar da vida. Hoje a liberdade está limitada; reclamações e críticas são recebidas com pedradas, pois são coisas dos vermelhos ou dos inimigos.


Arrisquei dizer ao motorista: que será de nós com esse governo que persegue todo mundo? O motorista respondeu-me, perguntando-me se eu tinha recebido o vídeo do escolar. Disse-lhe com os olhos voltados para a montanha: os cinco não voltarão de lá...


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