Portal da Cidade Mariana

CRÔNICA

Estado de Graça

Andreia Donadon Leal é mestre em literatura pela UFV

Publicado em 05/08/2019 às 06:58
Atualizado em

Nunca estive tão ladeada de morte. Entes adoentados,amigos em estado de graça em outro plano.Eu a olhar estrelas e fiapo da lua na madrugada gelada. Insônia sempre a me perseguir. Solitária, pensativa, prestes a liberar impulsos emotivos. Seguro lágrimas. Não há que se questionar nem refutar o inevitável. Desígnio é desígnio, ponto. Deus sabe o que faz.

Fecho a porta da varanda do quarto. Leio algumas mensagens. A correspondência de um leitor chama minha atenção.Ele diz que minhas crônicas têm um lado cinzento, solitário, obscuro, às vezes hermético. Hermética, eu? Não, meus vocábulos são simples. Concordo com o senhorzinho em relação à obscuridade, não ao hermetismo. Eu bem que gostaria de ter mais estados de graça, surfando na crista de ondas altas, robustas, mas elas se arrebentam baixas, fracas, amedrontadas. O calor que você, prezado leitor, me oferece, não será rejeitado. Não sou mulher de fazer pouco de gentilezas e alentos ofertados. Suas palavras são ternas, gentis e poéticas.

A palavra tem o poder de encantar e desencantar o outro. Entretanto,caro amigo, o instante é de turbulência, de altos e baixos. Vou colhendo frascos de esperança, mesmo que o caminho aponte para o precipício. A vida vai mudando rumos, rotas e scripts a cada amanhecer, entardecer e anoitecer. Não somos donos do destino nem do mundo. Se me chama de entristecida, compreendo e respeito perfeitamente sua leitura, afinal a literatura é do sujeito; a semiose, prática que ambiciono do leitor na compreensão textual (pedir muito?). Quem sou eu, para dizer se sua interpretação corresponde "ao que eu quis dizer, de fato?".

O autor não é dono irrestrito de sua obra depois que ela ganha o domínio público. Mas devo lhe dizer que a tristeza tem me pegado de jeito, sim. Não é que eu tenha me esmorecido nem feito corpo mole. Há momentos da vida que não são flores, frutos e luzes. A caminhada pode ser longa ou curta, não importa, mas que esse mundo se encontra abestalhado e abrutalhado, é fato corriqueiro; e lhe digo que se não fossem a poesia e a arte, a coisa estaria muito, muito pior.

Nunca fomos tão tristes, deprimidos e líquidos. Vejo jovens e adultos trancafiados em seus quartos, viciados em aparelhos eletrônicos. Não sou saudosista, fora de moda, mas aquém do seu conceito de felicidade. A tecnologia facilita a vida, mas é feito remédio que conserta comorbidades e ataca órgãos. Vivo numa Ciberdúvida. Nem tudo é respondível nem perfeito. Perfeição, quiçá na arte. Ei-la repleta de graça em sua inominável definição. Nasce arte, faz-se poesia, despida de impurezas, efeitos colaterais, feita de graça indescritível, não dicionarizada pelos literatos.

Arte não se diz, não se relata, não se prende em laudas com caracteres, paragrafações, fontes, linhas; não se equaciona. Arte é aquela que diz sem querer dizer, retratar, explicar, convencer, mas espantar, encantar, elevar, enaltecer, engrandecer, extasiar... Arte é estado de êxtase, que nenhum entorpecente tem o poder ou a fórmula de levar o sujeito ao esplendor da felicidade. O estado de graça de que falo é este, sagrado, passageiro, átimo de segundos; ainda bem que breve, leve, puro.

Seríamos insensíveis demais se vivêssemos em pleno estado de graça. Não teríamos compaixão com o sofrimento e a dor do outro. Não, não, esse cenário de plena graça não me seduz, não me agrada! Prefiro lampejos de felicidade, mínimo de graça, pés no chão. Se estou triste, o instante me faz assim, o sofrimento do outro me aflige, a perversidade me enoja, a crueldade me revolta, o egoísmo me aborrece, o deslumbramento constante me enfada.

A última vez que entrei em estado de graça foi quando um guri bateu à porta de minha casa; entregou-me um papelinho colorido. Saiu correndo, sem dizer uma palavra. Fechei o portão. Abri o envelope. O conteúdo dizia que gostaria de me conhecer, tomar um café com pão de queijo e conversar sobre os personagens da minha obra. Sorri. O nome do remetente era André. O dia marcado, o seguinte – “amanhã”. Fui ao mercado. Comprei algumas iguarias para o encontro. Esperei-o, ansiosamente. Ele não apareceu. Li a carta duas vezes: – “amanhã”. Esqueci da visita do menino. Ele apareceu dois dias depois. Nossa conversa rendeu um frasco inteiro de graça.

O exagero nos engessa, prezado leitor. Se minhas linhas surfam nas cristas de ondas de tristezas, devo-lhe dizer que são passageiras. Viver estática em humores claros ou escuros foge da minha forma de viver. Apesar dos pesares, dos afogamentos em águas de ondas fracas ou robustas, vivo esperanças ora mortas, ora vívidas; ora em estado de graça,ora em parcas tristezas. 


Fonte:

Deixe seu comentário