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Fotógrafa mineira lança livro sobre o rompimento da barragem de Fundão

Confira a entrevista que o Portal da Cidade Mariana realizou com a autora do livro 15:30, Isis Medeiros, lançado no último dia 30

Publicado em 23/12/2020 às 02:00
Atualizado em

Leia a entrevista do Portal da Cidade Mariana com a fotógrafa Isis Medeiros. (Foto: Lucas Hallel)

Em 05 de novembro de 2015, a barragem de Fundão, da Samarco, rompeu atingindo comunidades, cidades e a Bacia do Rio Doce, ocasionando na maior tragédia socioambiental brasileira. Para marcar os cinco anos do rompimento da barragem de Fundão, completados este ano, em novembro, a fotógrafa mineira Isis Medeiros, lançou o livro fotográfico “15:30”.

O título é uma referência ao ao horário em que foi anunciada de forma interna na Samarco sobre a ruptura da barragem de rejeitos. “Queria chamar atenção para a hora exata, porque segundo a população atingida, foi exatamente quando a vida foi interrompida em toda região. É uma simbologia que representa esse rompimento da história e um início de um longo processo de novos crimes e violações de direitos”, conta a fotógrafa natural de Ponte Nova-MG.

Foto: Isis Medeiros

Com 71 imagens, a obra ainda contém um prefácio assinado pelo líder indígena, escritor e ambientalista Ailton Krenak, além de cartas de mulheres atingidas escritas à fotógrafa e um mapa. A sua capa traz um mapa de toda a Bacia do Rio Doce que foi atingida pelos rejeitos de mineração.

Para saber mais sobre esse trabalho e sobre a experiência de fotografar pessoas que estão passando por situações traumáticas, o Portal da Cidade Mariana conversou com a fotógrafa e autora de 15:30, Isis Medeiros, sobre o seu trabalho.

Capa e contracapa do livro 15:30. Foto: Lucas Hallel


Portal da Cidade Mariana: O que te trouxe em Mariana logo após o rompimento da barragem de Fundão? Quais foram as suas primeiras impressões?

Isis Medeiros: O que me levou à Mariana, de fato, foi a curiosidade ― acho que não só eu, mas muitas pessoas foram movidas por essa curiosidade no primeiro momento. Além disso, fui acompanhando o Movimento Atingidos por Barragens (MAB) e o jornal Brasil de Fato.

Quando eu cheguei à Mariana, eu me deparei com uma situação muito complexa que eu não conseguia muito bem me movimentar no jogo. Com o passar dos dias e me envolvendo com as pessoas, com as famílias atingidas, com os poderes públicos que estavam ali e com todo o cenário que se criou a partir da tragédia, eu comecei a me movimentar para fotografar, mas, no primeiro momento, me senti muito diante a um caos e chocada com aquela realidade que estava vivendo a cidade.

No primeiro momento veio esse choque, mas logo eu fui entendendo a complexidade da situação, do debate sobre a mineração e de todas as questões que envolvem uma tragédia como aconteceu em Mariana. A partir dali eu comecei a me envolver com o tema para entender melhor e mais profundamente a questão da mineração, para além do próprio rompimento da barragem, e comecei a fazer o trabalho de fotografia que eu faço até hoje: de começar a conversar com as pessoas atingidas e ir aos territórios atingidos.


Isis Medeiros, fotógrafa e autora do livro 15:30

Vidas interrompidas

Foram 45 cidades atingidas e milhares de pessoas que tiveram as suas vidas interrompidas, que tiveram as suas fontes de trabalho roubadas e que não tiveram possibilidades de reconstruir mesmo a vida depois de tudo isso.

Isis Medeiros, fotógrafa e autora do livro 15:30

 


PCM: Para você, qual é a relação entre a fotografia e narrar histórias?

Isis Medeiros: Eu acredito na fotografia como uma grande ferramenta de comunicação. Não só expressão, mas de informar às pessoas o que está acontecendo. A fotografia sozinha não resolve os problemas e não é uma ferramenta única para a transformação da realidade e da sociedade, mas ela funciona muito bem junto com outras.

A minha fotografia é fotojornalística. Então, ela tem uma função de informação e comunicação, mas ela também tem um papel de também trazer de uma forma mais lúdica e artística sobre realidades que tangem e sensibilizam as pessoas para alguns temas. A minha fotografia vem sempre acompanhada de relatos e denúncias feitas por essas próprias pessoas fotografadas. Eu tento trazer, através do meu trabalho, a voz dessas pessoas: como elas se posicionam e se colocam no mundo, além de todas as vivências que elas têm passado e todas essas dores que elas têm sentido.

Eu acredito na fotografia como uma ferramenta social mesmo de transformação; como uma ferramenta muito importante de perpetuação da história, da memória e das pessoas. É através dessa fotografia que eu acredito que a gente consegue trazer um pouco de sensibilidade para quem está fora e não vive essa realidade dura na pele diariamente.


PCM: Quais são os cuidados necessários ao fotografar acontecimentos iguais ao de Mariana, visto que as pessoas estão passando por um momento de fragilidade e dor?

Isis Medeiros: É muito importante a forma de abordar as pessoas quando se trata de uma tragédia, uma situação traumática para muita gente. Você saber a forma de abordar, de se aproximar das pessoas, de cuidar para que você seja o mais fiel possível à realidade que essas pessoas estão vivendo, mesmo que você não seja desse território e não faça parte da vivência cotidiana delas, mas é muito importante que se respeite a história e que se respeite a forma como as pessoas estão se posicionando, como elas estão dizendo sobre aquilo.

Foto: Isis Medeiros

Então, no primeiro momento, acho que o mais importante é a escuta, já que muitas dessas pessoas não têm a oportunidade de desabafar, de poder se abrir para qualquer pessoa. E quando você chega ali com uma ferramenta onde ela pode se comunicar, onde ela pode dizer sobre aquilo que ela está sentindo, eu acho que é uma oportunidade que você tem de ouvir, de levar essa mensagem adiante, de conseguir chegar em outros lugares que elas não conseguem sozinhas. Então, eu vejo a fotografia como aliada mesmo na luta por direitos dessas pessoas.  

Por isso, é importante mesmo a consciência de quem fotografa e documenta esses territórios a relação de empatia pela pessoa fotografada, pela história que está sendo contada, mas também pela perpetuação disso porque isso acaba trazendo repercussão ― não só para quem fotografa, mas para o fotografado também ― e esse envolvimento com a história e com a situação. Então, todo cuidado é sempre necessário para que você não violente ainda mais essa pessoa que está sendo documentada porque existem muitas narrativas que violam, que machucam e fazem uma abordagem de forma agressiva. Por isso, eu tento tomar todos os cuidados para que não seja mais um vetor de violência e sofrimento.


PCM: De tudo aquilo que você viu e fotografou, o que mais te marcou?

Isis Medeiros: Uma das cenas que mais me marcou foi quando eu entrei na escola de Paracatu de Baixo que estava totalmente destruída. A escola estava toda tomada pelo rejeito até o segundo pavimento e aquilo foi tão marcante e chocante. Quando eu entrei naquela escola, não esqueço dos arrepios que eu sentia e o quanto que aquilo me machucava e dilacerava por dentro porque eu ficava imaginando as crianças que naquele momento [do rompimento] estavam na escola e do desespero de sair, ter que evacuar e de abandonar uma área que é o lugar que essas pessoas construíram a vida delas.

E é especialmente traumático para as crianças que não entendem muito do que está acontecendo, que não sabem ainda lidar com os sentimentos e essas questões, viverem um trauma como esse: algo para a vida inteira que elas nunca vão esquecer. Nunca. É algo que marcou muito e que foi uma ruptura na vida de todas elas.



Foto: Isis Medeiros


Outras cenas que me marcaram bastante foram as casas destruídas em Bento Rodrigues. Aquilo é um cenário muito trágico e feio que foi a minha “primeira guerra”. Imagino que os escombros de guerra são muito parecido com aquilo e isso machuca muito porque você imagina que cada pessoa ali, conta a história de cada uma daquelas casas e relembra a memória que ela tem daquele território, de como eram as relações, de como as coisas aconteciam em cada uma daquelas ruínas ― que hoje a gente enxerga como cenário destruído. Para elas, aquilo é um resquício de memória, um pouco do que ficou de tudo isso que elas viveram.

Além disso, outra cena muito marcante foi de uma criança que estava plantando feijões por cima do rejeito e dizia que ali nasceria feijão e outras plantas para poder cobrir aquele barro feio.


PCM: Como surgiu a ideia do livro “15:30”? Qual foi a sua maior dificuldade para publicar a obra? 

Isis Medeiros: O livro começou a ser idealizado logo que eu comecei a documentar sobre Mariana porque eu me indignei muito com a forma como a imprensa documentava e dizia sobre o que estava acontecendo. Eu achava violenta a abordagem e achava ruim dizer sobre o sofrimento, mas não dizer o que causava tudo aquilo. Quem tem consciência e conhece os motivos que fizeram com que as pessoas vivessem essas violências sabe que a mídia foi bastante parcial em defender as mineradoras.

Claro, dizer do sofrimento e da luta, mas, principalmente, de dizer fielmente aquilo que a empresa queria que dissesse. Então, isso é muito triste! Você vê uma imprensa mais comprometida com as mineradoras e com o sistema econômico do que com a vida da população. Foram 45 cidades atingidas e milhares de pessoas que tiveram as suas vidas interrompidas, que tiveram as suas fontes de trabalho roubadas e que não tiveram possibilidades de reconstruir mesmo a vida depois de tudo isso.

Então, o que eu quis, foi contar um pouco dessas histórias a partir do meu trabalhos, das minhas vivências e das minhas fotografias, além de resgatar um pouco do que foi perdido, do que foi ficando para trás com o passar dos anos. O livro vem para trazer um pouco dessa memória e um pouco do que a imprensa já esqueceu. O livro tem esse papel de resgatar as histórias e de levar essa luta adiante, de ser uma ferramenta de memória e de transformação.


PCM: O que mudou na sua vida pessoal e profissional após a publicação da obra? Você pretende ainda realizar outros projetos sobre o rompimento da barragem em Mariana? 

Isis Medeiros: O que mudou, na verdade, na minha vida após a publicação eu ainda não posso dizer porque tem menos de um mês que eu publiquei o livro, mas eu posso dizer que desenvolver esse projeto e fazer esse livro ser publicado modificou muito a minha relação com a fotografia. Eu acredito que a partir dessa edição e publicação, outros trabalhos vão vir.

Penso sim em desenvolver outros projetos fotográficos e fazer mais sobre o meu trabalho em Mariana, que eu acredito que é necessário continuar falando sobre esse tema ― não só sobre Mariana, mas também sobre outros territórios que também foram atingidos e que estão sendo muito prejudicados pela mineração.

Em um próximo momento, eu penso em fazer um também sobre Brumadinho porque é uma documentação que não parou, que não acabou e que não vai acabar. Acho que tem muito a ser dito ainda e a ser documentado. A história caminha, as coisas vão continuar acontecendo, os problemas vão continuar surgindo e a gente precisa ser muito forte para continuar documentando e falando sobre mineração porque é um tema denso e complexo, mas muito necessário e importante.


PCM: Você também registrou o rompimento da barragem em Brumadinho? Se sim, conte um pouco dessa experiência e em como ela se assemelhou ou se diferenciou ao que você viveu em Mariana.

Isis Medeiros: Eu acho que existem muitas semelhanças e muitas diferenças entre Mariana e Brumadinho. As semelhanças são que tratam-se de tragédias e crimes ambientais absurdamente grandes. A quantidade de pessoas que estão envolvidas e que são prejudicadas por tudo isso que aconteceu é enorme, tanto na Bacia do Rio Doce quanto na Bacia do Rio Paraopeba. É absurda a dimensão que isso tomou!

Foto: Isis Medeiros

Mas existem particularidades dessas duas tragédias que é o fato de que as pessoas ainda estão vivendo em comunidade em Brumadinho, o que é muito diferente das primeiras comunidades atingidas em Mariana. Em Mariana houve uma separação muito grande da comunidade e as pessoas ficaram deslocadas na cidade, cada uma vivendo no seu canto em uma situação muito isolada mesmo. Então, isso faz com que a comunidade se separe, que a luta perca forças e com que as pessoas se desestruturem mesmo em todos os sentidos.  

Já em Brumadinho, as pessoas ainda conseguem ter essa convivência, esses contatos porque a cidade não foi destruída ― algumas casas foram destruídas, mas a maior parte da comunidade ainda continua de pé. Apesar de que muitas pessoas se mudaram dessas comunidades e foram embora, porque não quiseram permanecer por causa da dor e do sofrimento que tudo aquilo gerou na vida delas. Essa é uma grande diferença que eu percebo. Então, eu consegui, em Brumadinho, manter um trabalho a mais longo prazo, me dedicar mais e ficar mais próxima a essas pessoas e conseguir ter um trabalho mais denso junto delas.


Sobre Isis Medeiros  

Foto: Mário Lucas

Formada em Design, Isis Medeiros decidiu que iria rumar pela fotografia ainda durante o curso, quando fez um intercâmbio na Ilha de Malta. Além de ter feito parte da cobertura da tragédia ambiental de Mariana e da situação da mineração em Minas Gerais também em outros territórios, participou de outros projetos com viés social.  

Medeiros é integrante da foto-coletiva Mamana e uma das fundadoras do grupo “Fotografia pela Democracia", iniciativa nacional de fotógrafas e fotógrafos que lutam em defesa da democracia e dos direitos humanos no Brasil (2018). Em 2019, recebeu menção honrosa no Primeiro Congresso de Fotógrafas Latino-Americanas, única brasileira premiada no concurso.

Em 2020, coordenou a campanha solidária “Fotografias por Minas”, em apoio a comunidades desassistidas para enfrentamento do coronavírus. Também lançou neste ano o projeto fotográfico documental “Canaã” e foi convidada a apresentá-lo através do programa Convida, do Instituto Moreira Sales.


Sobre o livro

Foto: Lucas Hallel

120 páginas, 71 fotos, brochura 

Preço na capa: R$ 45,00

Editora Tona

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