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crônica

Gratidão

Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 19/04/2019 às 03:06

(Foto: Google Imagens)

Hoje falaríamos sobre gratidão. O clima estava propício para conversas, digressões e prosa longa: nebuloso e frio. O fogão à lenha aquecia ambiente, corpo e mente.


Assopramos o fogo, colocamos mais lenha e pedaços de jornais, para ferver água e passar café. Derretemos rapadura para adoçar o líquido fumegante. Mãe mexia, vagarosamente, o coador de café, com destreza e experiência nímias. Café de mãe não era forte, nem fraco: no ponto; na medida certa, para agradar visitantes e família. Nem tínhamos visitas, hoje, em casa, apesar de ser domingo, mas a meticulosidade e o carinho para coar café permaneciam nas mãos firmes de mãe.


Mãe voltou o olhar novamente para mim e perguntou-me, sem rodeios, pela segunda vez, o que era, gratidão. Mãe, de vez em quando, vem com essas perguntas, deixando-me surpresa e com as “calças na mão”, como ela dizia, quando eu demorava para responder-lhe.


“Deixei você com as calças na mão, novamente... Menina estudada não tem resposta na ponta da língua”? Disse brincando.


“Nem sempre... Quem me dera ter respostas para todas as perguntas...


Quando mais vivo e estudo, mais dúvidas e perguntas tenho”...

Suspirei. Pensei. Peguei o caneco esmaltado da mão de mãe, sem pestanejar, para ganhar tempo. Raspei a garganta. Mergulhei em pensamentos e em alguns aforismos que aprendi com alguns mestres. Para Masaharu “a gratidão deve ser expressa com palavras e atitudes”; para Esopo “a gratidão é a virtude das almas nobres”; para Samuel Johnson “a gratidão é um fruto de grande cultura; não se encontra entre gente vulgar”.


As lembranças fervilhavam quando ativava a memória. Era necessário procurar a resposta certa. Mas no meio do caminho, perguntei- me: existe receita para gratidão? Retornei o olhar para figura de minha mãe, que agora estava quebrando ovos, batendo o conteúdo numa vasilha de plástico funda.

Um bolo. Em poucos instantes, abriu a geladeira, pegou a manteiga. Colocou duas colheres rasas de margarina e duas xícaras de açúcar cristal. Bateu os ingredientes com sorriso no rosto. Depois despejou farinha de trigo e leite morno. Apontou para as laranjas na fruteira, sem dizer uma palavra. Levantei-me do banquinho imediatamente, peguei três laranjas, descasquei-as, para depois espremê-las no caneco. Passei o suco para mãe, que já tinha colocado o fermento na massa.


Acendi o forno do fogão à gás. Mãe tinha dois na cozinha. Manejava-os com destreza. Os filhos sabiam o motivo: “fico com os dois: o antigo e o moderno”. Gosto de manter os dois em uso. Ambos têm utilidades. O fogão à lenha nos serviu por mais de três décadas, e ainda continuará servindo; o fogão à gás nos facilita a vida”. Escolhi conservar “meu velho companheiro”,

mesmo com minha atual limitação. Não tenho a energia de outrora, para buscar lenha no mato. Não tenho necessidade de cortar lenha para fazer almoço, quitandas e jantar... Mas, não sei dizer, exatamente, o motivo pelo qual nunca abandonei o fogão à lenha...


Mãe despejou a massa na vasilha de alumínio. Peguei das mãos dela o tabuleiro. Abri a porta do forno. Coloquei o conteúdo para assar. Retornei ao banco; mãe colocava mais café em meu caneco.


Levantei o caneco à boca. Tomei o líquido morno. Olhei para mãe e falei:


“Não sei definir a palavra gratidão, usando expressões dicionarizadas, da mesma forma, que a senhora não sabe dizer, exatamente, o motivo pelo qual nunca deixou de usar o fogão à lenha”. Talvez, a gratidão seja a memória do amor ou a medida do coração, ou quem sabe, é a fidelidade desmedida que a senhora nutre pelo fogão à lenha... Não o abandona, porque sabe que ele lhe foi útil na vida, não importando o tempo, o lugar ou o espaço. A senhora não sabe definir, com palavras, o nome do sentimento que mantém o fogão à lenha “aceso” e funcionando. Gratidão é esse sentimento de fidelidade e reconhecimento sem medida, que só pessoas gratas, mantém em seus corações...

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