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Crônica

Infertilidade

Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 01/03/2019 às 07:20

(Foto: Google Imagens)

A tarefa de um cronista tem gosto paradoxal na descrição; às vezes, fictícia e na maioria das vezes, factual. O processo criativo tem gosto azedo e doce ao mesmo tempo. Quando estou despida de ideias e assuntos interessantes para escrever textos, volto a observar discretamente (tento não ser indiscreta, mas, às vezes, extrapolo, sem querer) fragmentos de conversas, diálogos, situações corriqueiras em bares ou nas ruas. Adoro bares! Bares meio cafonas. Sou meio intelectual, meio jeca, cafona também, e não tenho problema algum em assumir minha cafonice. Muitos mineiros ainda são assim. Mineiros do interiorzão. Observar casais de namorados apaixonados, então, é néctar dos deuses para um escritor. Ilusão e delicadeza nímias estão impregnadas nos gestos e nas ações melosas e veludosas. Hormônios em pleno funcionamento; batimentos cardíacos acelerados, brilho nos olhos e cabeça nas nuvens.
Cada fase tem seu encantamento, sem dúvida. Envelhecer, por exemplo, é extremamente encantador (sinal que vivemos).  Primeiros fios de cabelos brancos; primeiras rugas; primeiros passos trôpegos; experiência acumulada; minutos, segundos e horas são extremamente valorizados; ironia mais presente; mais apego às pessoas do que aos bens materiais. Indubitavelmente, há beleza nesta fase. Há encantamento até na morte (não estou sendo irônica, mas realista). É tradição, o defunto ou a defunta ficarem estáticos no caixão, por motivos óbvios; pessoas ao seu redor, chorando ou lamentando seu passamento. O morto ainda recebe coroas de flores, frases saudosas e elogiosas, beijos na testa, carícias no rosto. Ele é a atração de uma cena banal. Morrer é trivial, certeiro, rotineiro e chato. Ser velado é chato, para o defunto que não sabe que está sendo velado, e mais ainda, para as pessoas que velam o morto, à noite inteira e grande parte do dia. É uma chatice perversamente dolorida para os parentes, também.
Hoje não estou em um velório (ainda bem!), não estou em um bar meio cafona, observando pessoas ou jogando conversa fora, com a costumeira turma de poetas de Minas; também não estou suspirando discretamente, quando olho de soslaio, um casal de namorados apaixonados, que troca olhares faiscantes e carinhos exagerados, como se não existisse mais ninguém naquele recinto ou na face da terra, ou melhor, não houvesse nada mais além do que aquela paixão arrebatadora e pungente. E não existe, mesmo! A primeira paixão é cegante. Os leitores provavelmente intuíram que eu também não estou em nenhum desses lugares mencionados. Alhures, resolvi acessar algumas imagens e situações corriqueiras da memória, para ativar os instintos criativos e usá-los para escrever. São inúmeros fragmentos guardados. Estou em um momento de encantamento: sentada no vaso sanitário, no banheiro de minha casa, escutando um som longínquo de música sertaneja, (provavelmente, algumas pessoas estão comemorando o aniversário de alguém) mesclado ao barulho repicado das chuvas finas tocando no chão. Hoje, especificamente hoje, estou em uma fase de encantamento: a corriqueira infertilidade de ideias, de motivos e de inspiração para escrever...

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