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CRÔNICA

Não vou me acostumar...

Confira a crônica de Andreia Donadon Leal, Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 17/12/2019 às 22:34

Último mês do ano. Perdas, ganhos, caminhada robusta. Nem sei qual assunto mencionar. O poeta diz que ‘tudo vale a pena quando a alma não é pequena’, e quando a alma pena? Miúda foi minha infância feito pitanga madura caindo ao chão. Infância, horas perdidas caminhando pelas areias mornas da praia da Costa. Itabira dói feito ponta de faca, apunhalando meu peito. Santa Bárbara, luminescência prestes a se apagar da memória. Mariana, mar de montanhas brumosas, onde nasceu a poesia. Não sei quais paragens habitam meus rubros estágios.

Do pathos e da inércia me enuncio com a ponta do pavio menos curta. É que o tempo estica paciência, volteando focos. Dores exíguas frente a tantas ripadas do ano que se esvai. Xô! Que tudo passe a correr. Mal posso esperar o findamento do ano, para rasgar o calendário em mil pedaços. Jogar dias e meses no ribeirão e, com eles, as agruras de outrora. Os calendários, as agendas e as folhinhas estão no quarto de despejo, para serem lançados no rio. A água há de levar todos os males.

Caminho pela casa, atônita com as notícias. Famoso morto num piscar de olhos, em acidente vulgar doméstico. Vida frágil, Deus! Besta seria eu se acreditasse que a vida é só sonhos, frutos e luzes. O anônimo, desconhecido, foi morto por bala perdida. É mendigo, fora das lentes. Quanta munição disparada antes do bom senso. Respiro angustiada. O ar foge dos pulmões. Ataque de pânico. Uma dose de ansiolítico no café da manhã e na hora de dormir abranda a patologia. Não fui eu quem disse.

Depressão é corriqueira, mal do século, difícil é ter equilíbrio emocional nesses tempos tumultuados. A máquina, a culpa é da máquina, das mensagens abreviadas que recebo com frequência. P/S/C, este é o conteúdo da mensagem no grupo: Para Seu Conhecimento. Disparo pontos de interrogações. Caras e emojis aparecem. Caçoam de minha incompreensão e do meu tradicionalismo linguístico.

O vaidoso das letras dispara cento e cinquenta fotos de suas ladainhas medalhísticas; crise de egocentrismo na terceira idade. Chamem os psiquiatras e psicólogos do grupo, porque todos estão à flor da pele. Mal acabo de teclar, a notícia do auto-extermínio é publicada antes que eu tenha tempo de chegar à casa do suicida. Vou-me acabando, me desgatando com a finitude.

Ninguém é duro feito rocha. Não há vaso inquebrável na casa de mãe. Eu acreditava que médico era curador, curandeiro, milagreiro. Tolice de mineiro. Encomendaram-me doze textos este ano. Azar de quem pediu, inspiração encalhada, ode a quem me foi caro.

Gosto metálico na boca. Glândulas salivares em falência. Boca seca. Visão borrada. Espio o noticiário. Baile Funk vira bailado da morte. Paraisapólis virou um inferno. Que juramento ‘satânico dos diabos’ fizeram aqueles policiais? O mundo está do avesso. ABUSO DE AUTORIDADE DA POLÍCIA ATIVA A VIOLÊNCIA QUE ATIVA A MORTE QUE ATIVA A INDÚSTRIA DA IMPUNIDADE.

Homens, mulheres, crianças, adultos e adolescentes desaparecem da face da terra num abrir e fechar de olhos. Autoridades abusivas passam por cima, colocam o terror e o desespero onde deveriam levar paz. Que Paz? Atiraram pedras na casa do vizinho, atearam fogo na mata. Há fumaça pela estrada. Nada de bruma, neblina. É tempo de chuva, de lavar seixos, no entanto, as águas do céu se escondem...

Calendário findando, escondido no quarto de despejo. Aguardo a ação das águas do último mês. Que este ano vire num piscar de olhos, que as escabrosidades se afoguem às margens das águas silenciosas. O sonho ri de mim, deixando ilusões e mágoas para trás nas águas turvas e geladas de um rio sem fim. Estou doente, também. A alma, pena. Uma tempestade se aproxima, mas eu me recuso a me acostumar com o já corriqueiro abuso de autoridades.


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