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Crônica

Papo de Mãe para Filha

Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 16/06/2019 às 05:38

Eu e ela conversávamos sobre enterro, com naturalidade. Temática estranha e macabra, para quem tem superstição. Eu e ela, diálogo franco, sem frescuras e limitações. Íamos discursando sobre os que já passaram dessa. Ela se sentia aterrorizada com as sessões fúnebres tradicionais. “Na minha, nada daquelas flores fedorentas, véu, velas, muito menos o velório Municipal. Meus filhos me livrem daquele cenário triste! A única coisa que me agrada é o novo cemitério. Este sim, ficou aconchegante e belo; mas opto por ser velada na área de casa, junto aos meus vasos. Vizinhos, amigos e parentes hão de admirar minhas plantas bem cuidadas e viçosas. A parentada se surpreenderá com a reforma. Os espelhos das escadas imitam seus azulejos. Todos estão a gostar, do lado de fora, dos degraus com ladrilhos coloridos. Nem desconfiam que são adesivos. Desço as escadas feliz e rapidamente, apesar da idade, para espiar os que param para ver os degraus. Quem passa na Maria Carolina, na minha calçada, para admirar os topes. Nossa rua, meio deserta, infelizmente. Sinto falta dos diletos vizinhos que se foram ou se mudaram daqui. Dá nó no coração. Dá dó deles e de mim. A vida é cheia de reviravoltas. Um dia, todos reunidos em almoços de domingo e festivos; com o passar dos anos, os membros da família vão diminuindo... Quando assustei, seu pai havia ido, deixando um vazio na casa e no meu coração. O ambiente ficou meio desbotado, triste, sem vida... O mato da casa desocupada ao lado cresce feito erva danada. Peço ao proprietário para limpar o matagal. Tenho medo de bichos, insetos e doenças. Mas ele é relaxado, desatento e pouco se importa comigo.

Sinto falta do cheiro de quitanda, das vozes da gurizada e de minha amiga, que remexia o fogão à lenha todos os dias. Olho para o mato, respiro o abandono. Sinto-me abandonada, também... Lamento a mudança da comadre. As novenas cessaram. Minha fé não se abala. A montanha é a própria fé. Rezo o terço de segunda a segunda. Remexo as roupas do guarda-roupa e as gavetas de mantimentos. Tudo organizado, mas sinto ganas de arrumar tudo novamente. É cíclico. Ninguém há em casa para me reter. Madrugo nessas tarefas. Gosto de ver fotos dos filhos, netos e marido. Reclamo de todos. É minha personalidade. Falo, chorosa, daqueles que não me visitam com frequência”.

Deixo-a reclamar. Não dou corda, muito menos falo deles, pois ela rebate com a desculpa, ‘no entanto, ele (ela) são bons, fizeram isto ou aquilo’.

O próximo passo é pintar o muro de vermelho, sua cor favorita. Planeja colocar cerâmica na escada cimentada. Discordo. Ela rebate. Deixo pra lá. Discutir pra quê? Faz chantagem e teatro, como ela mesma diz, quando discordamos. Diz que quer morrer. Vem à baila, o rito fúnebre. Sinto-me triste. Escuto. Faz menção em ser vestida do uniforme de seu time. Arregalo os olhos. Nada de choradeira, e se você fizer escândalos, levanto do caixão e lhe dou uma coça na frente de todos. Arregalo os olhos, novamente. Ela diz isto com o dedo em riste. Nada respondo. Ai se responder. Manda as três se unirem. Percebo, agora, que todos estão nervosos, uns passando do ponto. Ela ficaria P da vida, com nossas patadas, com o “não estou nem aí”, para o turno, dificuldades e deslocamento dos outros.

Passo as mãos em seus cabelos ralos e esbranquiçados. Não gostaria, nem um pouco, de ver seu cabelo sem tinta. Não gostaria, de jeito nenhum, saber que suas unhas estão sem esmalte. Ficaria indignada e apavorada com os atuais detalhes, que não me agrada descrever.

Percebi, com o tempo, que a raiva da vizinha que se mudara não era raiva, mas mágoa por ver a Maria Carolina cada vez mais deserta. Ela tinha razão. É de fato um sentimento de desolação e abandono, ver um se despindo do invólucro ou se mudando de morada. Sinto, também. Tenho ganas de levá-la embora. Chego a falar sobre isto; ela muda de assunto. Não gosta da proposta; sua paixão sempre foi pela casa e por liberdade. Disto ela entende, perfeitamente. Acorda, escova os dentes, passa creme no rosto, toma dezenas de remédios. Acho o número de medicamentos um exagero, mas não sou médica. Os efeitos colaterais são cruéis... Ela não perde o humor, pois sempre aparece com os lábios pintados de vermelho púrpura. Percebo que usa, com mais frequência, esta cor. Predileção, certamente. Vermelho, cor quente, viva, que representa a linguagem do amor. Pois! Esta é sua sintonia: mais na dela, menos na nossa vibe. O assunto é cortado, quando percebo que ela cochilou. Abro o guarda-roupa. Cubro-a com o cobertor vermelho. Fico a admirar o rosto bonito, nariz de grego. Bonita. Respira com tranquilidade. Fecho a janela do quarto para escurecer o ambiente. Desligo a televisão, uma de suas maiores paixões, depois dos filhos, netos e time de futebol... O amor é assim, vibrante, quente, belo, intransponível, feito meus olhos focados em seu ressonar livre, poético e feliz...  

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