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CRÔNICA

Presente de Natal II

Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 21/12/2018 às 06:21
Atualizado em

(Foto: Google Imagens)

Tenho um caderno sempre à mão que o nomeei de rascunhos. Nele escrevo poemas, contos, crônicas e esboço desenhos. De madrugada levanto silenciosamente da cama e vou para a sala com o caderno de capa com as seguintes inscrições: “I Love Butterflies- I Love Rainbows - I love Blue – I Love Pink – ilustrado com árvores de folhas rosas, grama verde, pássaro branco, flores, borboletas, cara de urso cor de rosa e a modelo “Barbie” com as mãos no bolso de um jeans descolado, cabelão louro, olhos azuis, bolsa pendurada no ombro, corpo de modelo, sorriso quase imperceptível no rosto bonito.

A Barbie me remete à infância, ao sonho de consumo. Eu, quarta filha de uma família pobre vivendo no interior de Minas, com mais quatro irmãos, sonhava em ter a famosa boneca. Não posso reclamar da infância. Fui extremamente feliz. Felicidade discreta, que muitos não percebiam pela expressão meio sisuda que exibia no rosto. Herdei características de meus pais.  Seriedade, cartão postal da família. Barbie: presente que sempre desejei. Virou obsessão. A boneca perseguia sonhos e olhos para as vitrines das lojas de brinquedos; de dia, de noite, na escola e em todos os lugares. A propaganda do comercial televisivo me fazia pular de euforia pela sala da casa, sob o olhar gozador de meus pais e irmãos. Meu único assunto: Barbie; moda e febre da época. Tanto sonho e obstinação pela boneca, me levaram a escrever compulsivamente inúmeras cartas todos os Natais ao Papai Noel. Escrevia, colocava-a cuidadosamente no envelope branco ao pé da árvore de Natal montada na sala. Noel sempre contrariava meus pedidos. Foram cinco anos: sem resposta ou pedido de desculpas. O presente na manhã seguinte nada a ver com que eu desejava com tanta obstinação! Pode ser retaliação devido às teimosias e às estripulices durante o ano ou por ter falado algumas mentiras pequenas, foram os motivos de não ter ganhado o objeto tão almejado. Todo ano prometia, em rezas solitárias no quarto, ajoelhada, mãos postas, que não cometeria delito, não daria uma má resposta a meus pais, irmãos, professores, colegas, e me portaria de forma impecável, sem sair da linha. Certamente não cumpri a promessa, por mais que me esforçasse, alguma preguiça surgia e inventava uma ou outra falácia, para me safar de secar pilha de louças do almoço, ou uma repentina dor de barriga surgia para não comer verduras ou legumes. O Natal se aproximava e a carta sempre com o mesmo pedido: “Papai Noel, não se esqueça da minha Barbie”; esse ano falei menos de quatro mentiras, comi algumas verduras e legumes, tirei nota boa na escola, briguei somente três vezes com meus irmãos; então mereço a Barbie ”...  A boneca nunca vinha... Os presentes eram sempre similares: meias, chinelos, sapatos, roupas, jogos de dama, quebra-cabeça, jogos de varetas, de botão, etc. Lembro-me como se fosse hoje, de o Natal mais emocionante que ficou na memória. Logo pela manhã, os presentes estavam dispostos com nomes nos embrulhos ao pé da árvore. Eram lembranças, presentes simples, mas presentes de Natal. Nunca deixamos de receber um. O meu uma caixa um pouco maior,  logo inferi que fosse o sapato para a escola, pois o meu estava com a sola furada de tanto uso e não dava para colocar mais papelão porque o pé tinha crescido. Eu e meus irmãos pegamos os pacotes com uma algazarra danada. Meus pais encostados no batente da porta, olhavam extasiados as expressões dos filhos. O meu  tinha também um envelope pregado na caixa. Era uma carta! ‘Será que a Barbie estava dentro do embrulho’? A carta dizia: “querida criança, comemore o Natal com alegria por ter uma família unida e amorosa. Esse é o seu presente: uma boneca de plástico. “Não é a Barbie, mas é a boneca que Papai Noel pôde comprar para você”. Fiquei feliz da vida e animada com a carta; pela boneca que nomeei de Dora, que no dia vinte e cinco de dezembro aniversaria. O mais precioso presente de Natal: minha libertação e emancipação.

A Barbie continua nas vitrines, hoje mais incrementada e modernizada; nas capas de cadernos, estojos escolares, etc.; não em meu acervo de bonecas, mas na capa do meu caderno de rascunhos, sempre me lembrando de que não podemos ter tudo na vida ou o quê a indústria e a propaganda procuram com avidez, fazer as pessoas desejarem compulsivamente determinado produto, como se fosse uma necessidade fundamental, ou por que é estiloso mesmo: a colega de escola tem, a prima tem, a filha da professora tem, a menina da novela tem também... Estilo como disse  Aristóteles: é a emancipação do seu próprio ser.

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