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CRÔNICA

Quem se incomoda com a crítica

Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 05/09/2019 às 07:37

A minha crônica intitulada “difícil respirar nesse sufoco!” desagradou a gregos e a troianos, especialmente, os que confundem Literatura com a vida de quem escreve. O autor “finge que é dor o que deveras sente”, sábias palavras de um dos maiores poetas da Língua Portuguesa. Mas o aforismo não é sustentável para análises equivocadas. Há pessoas que confundem críticas a ações governamentais com atitude partidária, dizendo que “se é contra este, é a favor daquele”.  

  

Ora, pois! Cronista é aquele que coloca o dedo na ferida, aponta mazelas, agruras, passos fora do esquadro de todos os tipos de poder. Cronista é aquele que não se curva diante das imbecilidades alheias; é aquele que escreve com a ponta dos nervos; é aquele que quebra com a geleira; é aquele que soca o crânio do leitor com a rebeldia que lhe é peculiar, rasgando e costurando letras, palavras e orações. É aquele que tira o cobertor da mentira e liberta a verdade.  

 

Cronista tem os olhos abertos, o olhar atento, arguto sobre a realidade circundante; o pouso poético do pássaro, o toque amoroso do beija-flor sobre a flor, a bruma se desfazendo sob o sol matutino. Cronista é aquele que enxerga além marés, além montanhas, além ilhas, saindo de seu ninho, para pousar em outras plagas. Não obstante, saindo sem sair do lugar, na navegação onírica que a leitura proporciona. 

 

 Essas análises rasas, partidárias, assimétricas e infundadas me aborrecem. Não, não pertenço a essas casas de pensamentos doutrinatários, filosóficos e tradicionalistas. Esses sodalícios não são parte de mim, de minhas convicções, crenças, da minha defesa à liberdade, do meu encantamento e amor à literatura e à crença de que a arte é uma das formas mais fantásticas de suportar a triste realidade. Ando aborrecida, entristecida, encolerizada.  

 

Atire a primeira pedra quem, de fato, desejar atirar rojões delirantes de que aqui está tudo bem, que vivemos momentos de nímias felicidades, riquezas, farturas, justiças, honestidades. Pedras pontiagudas voam para todos os lados, perdidas, deslumbradas, seduzidas por patentes. As estradas andam abarrotadas de carros. Fomos parados em uma blitz . O policial fez perguntas de praxe. Tive pavor ao observar seu andar duro, com a mão no coldre. Nunca tive tanto medo. Não movimentei um músculo do corpo. Seguimos calados, estressados, cansados e assustados. Vivemos momentos tortuosos. Penso nas análises deste texto.  

 

Vão me vincular a determinado partido por criticar a realidade. Desde quando me entendo por escritora, nunca levantei bandeira para A, B ou C. Pouco me importam as interpretações, a literatura é do sujeito. O leitor não vai conseguir desvendar todas as ideias do autor nas linhas.  

 

E esse calor repentino? Suo demasiadamente. O frio mal deu as caras. O sol sobe alto de manhã. Nada de bruma, janela impregnada de sereno. Saudade da neblina de outrora. Saudade de usar cachecóis, casacos, toucas, luvas... O calor me enerva. O ar condicionado pouco alivia o abafamento. Continua a pegar fogo nas matas. Um acidente emperra o fluxo. Ambulância passa rapidamente. Meu coração dói, e como tem sangrado. Sangue desce em fartas doses.  

 

A poesia alivia minha cólera. Automatizada me faço, automatizada pelos trancos que a vida proporciona em determinados momentos. Ligo o celular. As mensagens me enfadam. Posicionamento textual? A literatura é verossimilhança da morte de alguém que nunca existiu; verossimilhança é falar dos desamores de um amor verdadeiro; verossimilhança é falar de um caso extraconjugal de João com Maria vividos por Pedro e Sara; verossimilhança é falar da riqueza de Augusto quando Fernando é quem é o afortunado; verossimilhança é falar que Adélia é de direita sendo que Madalena que é de direita; verossimilhança é falar que o Japão pega fogo enquanto o Brasil é que incendeia as matas. Verossimilhança, inverosimilhanças, falácias, verdades.  

 

Meu Deus, o que é Literatura para os que não sabem distinguir autor e pessoa física? Usar o vocábulo capeta em poesia é ser ateu? Coitado do Bicalho, crente em Deus, nem tem liberdade de soltar sua insigne voz de poeta que logo é autuado. Que “metafísica do inferno, que não traz explicação... Fechou-se o século/ao neobobismo”... Que neobobismo é esse, que nos denomina poetas dos infernos? “O inferno sim/não/mais/será/ruim!” (BICALHO).  

 

Os poetas fingem que nada sabem, sabendo que não sabemos de nada; sabemos algo de Literatice e compreensão textual. Intencionalidade do autor? Deixemos as análises para os doutos. Ainda estamos procurando as pedras no meio do caminho deste triste mundo, destas amargas alegrias, destas fomes inexistentes, destes sonhos loucos, destas depressões mentirosas, pois vivemos em terras da gente mais honesta e culta que o país nunca viu. O milagre aconteceu em meses. A água virou vinho. Pães e peixes se multiplicaram... Eis a mais bela flor da Literatura: a falácia. Em tempo: quem se incomoda com a crítica, talvez tenha sido atingido por ela. 


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