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Crônica

Simplesmente vagar a vida

Confira a crônica de Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 31/05/2020 às 05:30
Atualizado em

(Foto: Pixabay)

Chuva fina no quintal. Gotas esparsas tocam piso encardido. Águas correm para o ralo. Esplendoroso encontro milagreiro do céu com a terra; prefiro o despertar delirante do acaso à razão limitante. Vivo cada dia, morrendo aos poucos, decidindo se fico na lamúria da finitude ou levanto a cabeça, para seguir altiva em frente.

Não me importa o fenômeno climático do vapor condensado das águas, do ar, das nuvens carregadas para explicar a existência da chuva. Meus sentidos elevam-se a altitudes inatingíveis no ar, depois voam e caem, livres. Escuto sirenes, motores possantes de automóveis e zumbido de mosquitos bailadores no ar. Quisera ser bicho, inseto ou mosca. Minhas flores se misturam às hortaliças agarradas num abraço divinal. Trouxe para casa pedaços de coisas que perderam serventia. Sou avessa às coisas da praticidade e tecnicidade mundana. Pedaços da janela com detalhes em vidro se mesclam ao muro, que abrem portais da infância. Mente vazia em noites de insônia e dias nublados. Mistério insofismável da poesia carrego no peito desde menina; sem arredar os pés de casa ia para Antares, Pasárgada, América, Ásia, África, Europa; para dar bandeira aos cantos veríssimos da imaginação ou drummondiar a poesia. Continua a chuviscar. Alguém toca a campainha. Ignoro. Mente vaga; batem pernas por aí meus olhos. Ainda não sabem que é tempo para o ócio, fase elementar da criatividade. Tenho todo o tempo do mundo para isto. 

Alguém solta um berro. Desespero doméstico... Pétalas de flores abertas se movimentam no toque tênue da brisa. Encontro pregos enferrujados na grade de madeira desgastada pelo tempo. Quanto tempo, mesmo? Importa? Barulho de porta rangendo me distrai. Minha irmã teria medo de ficar no escuro, observando o bailado dos mosquitos, da chuva e o uivo do vento. Não sei se tive medo um dia, e não me lembro quando e como o perdi. A vida sabe a arte de saber ficar só. Não percebi que me reinventei. Tornei-me metade esperança, metade descrença. Aborreço-me disfarçadamente. Obtive licenciatura em esperar o momento certo para reagir. Nunca fui de papos longos e gargalhadas fartas. Aprendi que o amor é inexplicável. Notei há pouco que meus olhos carregam as cores da convivência harmoniosa. A porta do guarda-roupa está descascada. Grande parte de minhas roupas foram empilhadas para doação. Sempre tive apego a emoções, toques e palavras. Instalei um pequeno bebedouro, com água açucarada para o beija-flor. De manhã, um passarinho bebeu água feito flor. Os dias têm sido sem atropelamentos, notícias ruins, navegação na rede. Desliguei o telefone, apaguei as luzes. O delírio da poesia viajante do tempo invadiu meu dia: fui para Pasárgada ver o canarinho beber a água açucarada do beija-flor; fui, apenas fui, de luzes apagadas, de aparelhos desligados, em meio ao bailado de mosquitos, olhando o espaço exterior pelos fragmentos de vidro encrustados na janela de madeira. Fui bater pernas com os olhos nas gotas esparsas da chuva no fundo do meu vasto quintal da imaginação poética. Quem dera pudesse eu ser bicho, inseto ou mosca; chuva, flor, vento, para simplesmente vagar a vida!


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