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Crônica

Tocando Sensibilidades (Para João Gilberto)

Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 20/07/2019 às 02:03

Não sei quantas crônicas serão ruminadas por mim, enquanto meu tempo existir em encantamentos. Deixei-me voar na madrugada gelada dessa noite escura e sem estrelas. A janela do quarto, embaçada de sereno. A cortina encardida; o cômodo e os móveis empoeirados. Esse mundo não me agrada, nada. O frio entra por debaixo de roupas e sapatos nessa cidade bela, mas triste. Não me acostumei com a estação friorenta, nem me preparei para mudanças bruscas de estações. Acho que sou desprevenida, avoada, desatinada. Amanheci em prantos caudalosos; pouco me importa a vida. As pessoas são as mesmas, as condições precárias; consomem-se: o supérfluo, o superficial, a imitação grosseira dos bens, os fakes. Nunca se ouviu falar tanto de fake isso, fake aquilo. Para nomear uma calça, que antigamente chamava de napa, agora é couro fake. Uma vendedora me corrigiu outro dia, quando perguntei por curiosidade, se tinha calça de napa. “Não é calça de napa, senhora, é couro fake. Acho que me tornei meio fake, também. Cópia modificada de mim, a cada virada de ano. Somos fakes, com intensidade na troca de pelos. Pelos não são modificados somente na puberdade, infância ou velhice. Pelos, caindo ou nascendo, se modificam com a ação irreparável do tempo. Vejo rostos e expressões fakes; olhos fakes, que modificam o tom dos olhos com lentes de contato coloridas. Até acho que há poesia fake, que se metamorfoseou de algo volátil, desvirtuoso, aquebrantando meus olhos sob a lente dos óculos cor de rosa. Nunca usei armação cor de rosa. Abri mão das convencionais, pois acredito que estou fora de moda, ranzinza com as circunstâncias e as pessoas. Rabugenta com a moda fake. Por isso e outros, levantei-me fake, saturada desse horizonte borrado de fumaça, ao invés da tradicional bruma. Levantei-me desacreditada com esse ar irrespirável, infectado por um desavisado sem noção, que é proibido colocar fogo na mata. Ah, que tristeza, que melancolia indescritível esse inverno me traz. Tiro os agasalhos e cobertores do guarda-roupa, para encarar a estação apreciada por algumas gentes daqui e de lá. Esse frio é impávido, forte, com desejo de gelar tudo e a todos com força brutal. Falo com o vizinho para tirar os cobertores e agasalhos, que estiverem ao seu dispor, para não deixar o frio entrar em sua morada e pelas frestas das janelas e portas. José Miguel fala que sente frio até no calor. Sei disso. Ele veste blusa de manga comprida desde que o conheço. Idoso, apreciador de música clássica, fica na varanda esquentando o esqueleto. Gosta de apreciar minha casa, e me pergunta todos os dias se receberei visita de alunos ou jornalistas. Digo que sim. Ele balança a cabeça, em sinal de aprovação. Pergunta-me algo que não compreendo. Concordo. Ele fica feliz, eu aliviada por não ter que perguntar, pela segunda vez, o que ele disse. Sei que não gosta, quando não compreendem seus discursos. Finjo que compreendo, ele finge que foi entendido. Estamos satisfeitíssimos com o diálogo recíproco da concordância. Recebo os alunos, são de um distrito distante. Quietos e tímidos entram na casa como se estivessem pisando em ovos. Adapto explanações sobre arte e literatura para a turma de miúdos. Uns começam a relaxar, enquanto outros continuam com os dedos na boca ou no bolso das blusas. Faz frio, diz um. Outro pergunta o motivo da arte. Falo que arte é para tocar a sensibilidade humana; sem a arte o mundo seria cinzento, irretocável e tendenciosamente tedioso. Tédio é tipo: “não ter o que fazer”, respondo prontamente. Prosseguimos o pequeno périplo pelas galerias de arte, pelos quartos vermelho e rosa, pelo banheiro, pelas bibliotecas. Uma menina de olhos e cabelos castanhos pede para sentir o cheiro da poesia. Pego o aromatizador, borrifo a fragrância. Os meninos e as meninas ficam surpresos. “Tem cheiro do meu jardim; tem cheiro da flor da casa de minha mãe; tem cheiro de fazenda; tem cheiro da minha infância”. Percepções olfativas diferenciadas. O perfume tem essa magia, cada um sente um cheiro.

E por falar em poesia, saudosa estou da bossa nova. Impossível escutar o atual gênero musical nos jardins da praça no inverno. Um inferno ouvir músicas apreciadas pela nova geração. Mas na realidade, estou é desafinada com essa época. O que é ruim pra mim, pode ser ótimo para o outro. O que é fake pra mim, pode ser original para o outro. É que a vida de quem passou dos quarenta se torna meio saudosista, com ritos contínuos de lembranças nada fakes. A certeza que eu tinha sobre a vida, tornou-se fake de minhas necessidades. O mundo nunca girou em torno dos meus sentimentos e desejos. Meu comportamento, eu sei, é mesmo anti-musical e desafinado. Amanheci em saudade que não sai, não sai de mim, não sai. Eu nem sabia que tinha saudade de João. Risquei o indicador nas três cordas inferiores do violão encostado no canto do escritório: MI menor, afinadíssimo...

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