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Crônica

Torres

Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 11/01/2019 às 06:16
Atualizado em

(Foto: Google Imagens)

Tenho uma relação de amor cego com meu quarto de dormir. Este amor pulsante pinçado do fundo da alma, não é coisa de ontem nem de anteontem. Digo com propriedade e conhecimento de causa que não é pelo fato de passar grande parte do meu tempo nele. Longe de mim querer gabar o recinto, soltando louvores e odes ao cômodo. Se bem que ele merece, afinal é torre de onde vejo paisagens e cenários. O local, para muitos, cumpre com função de relaxar, deitar, adormecer feito pedra depois de um dia exaustivo de trabalho; chorar mágoas no travesseiro; se enroscar no cobertor, no edredom, ou no/na companheiro/a. Para mim vai além destas funções domiciliares.  Entrego-me ao encontro com o recinto, sem me perder nos braços de Morpheu, seduzida pela quentura do quarto. Vítima dos calores aconchegantes do travesseiro e do lençol, levanto-me em direção à varanda, atraída pela claridade nublada na rua. Olhos livres passeiam a torto e a direito, avistando e vistoriando o tempo. Uma neblina espessa cobre a paisagem diurna. Chuva fina e fria. Barulho de maquita. Todo ano é normal ouvir seu canto infernal, de alguma casa que está sendo reformada ou ampliada. A ampliação pelas bandas de cá é verticalizada, pois os terrenos são minúsculos, para poderem abrigar tanta ou pouca gente, que almeja mais espaço. Coisas de engenharia moderna. Coisas de livre arbítrio. Coisas de homens que edificam coisas já edificadas. Piso em cima de piso. Mais andares construídos em cima de dois, três, ou outros. É puxadinho que não acaba mais; é terraço multiuso, com funções de lavanderia, de varais para secagem de roupas, de área para churrasco, lazer, e por aí vai a criatividade humana, cada vez mais engenhosa e empreendedora. Temos que ser mais discretos também, pois muitas casas foram erguidas umas encostadas nas outras. Vivemos praticamente juntos, colados; melhor então, falar mais baixo, ouvir música com som ambiente, discutir com o marido e/ou a prole discretamente, fechar as portas e as janelas nas horas da intimidade.  É muita história, é muita família, é muita gente vindo, é muita gente saindo, é muita gente retornando. É muita confusão, para se viver em tão pouco espaço com coisa edificada.

Da torre continuo movimentando meus olhos em direção ao pulso da rua. Uns colocam roupas em seus terraços para secar. Uns ficam com os braços empoleirados na janela, para observar a monotonia do tempo. Uns lavam louças. Uns escutam som. Uns realizam trabalho doméstico. Uns reformam a casa. Uns brincam na rua. Uns discutem com os filhos. Uns recebem visitas. Uns se arrumam para sair. Uns ficam como eu, observando o ritmo confuso-sintonizado do alto da sua torre.  Confusão sintonizada. “Que paradoxo!”

Recordo-me da cidade que existiu na antiga Babilônia, caracterizada pela presença de uma torre, com vários andares. A citação da cidade na Bíblia talvez seja para explicar como surgiram as línguas e os povos. Outra explanação sintonizada com o meu pensamento é a simbologia da Torre de Babel com o pecado comunitário do homem de se tornar símile a Deus, saindo dos próprios limites. Saímos dos nossos limites ao verticalizar as construções? Saímos dos nossos limites ao querer mais e mais espaços? Talvez sim, ao ‘puxarmos’ cada vez mais andares numa engenharia confusa. Queremos construir casas espaçosas em terrenos minúsculos. E pedimos para o pedreiro se virar, puxando ali e acolá. Hoje somos um pouco de tudo na vida, sem ser especialista em nada ou quase nada.  Insistimos, ‘tecnicamente’ é possível de a ideia vingar; o puxadinho será concretizado em poucos dias, e ainda poderá ser copiado por vizinhos, quiçá por arquitetos!

Já não mais vítima da confusão sintonizada dos meus pensamentos, saio da varanda, fechando a porta e a cortina. Lembro da observação de um amigo que deseja mais contato virtual com as pessoas, pois a tecnologia possui ferramentas e infinitos aplicativos edificados, que abre cada dia, mais e mais portas. A torre de babel do século XXI é isto aí: construções edificadas, tecnologias disparatadas, o universo de cada um, o olho gordo de cada um, a compulsão de se tornar símile a Deus, edificando mais e mais.

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