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CRÔNICA

Em busca de reconhecimento (Coringa)

Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 17/11/2019 às 21:24

Meu companheiro apreciou pouco o filme 'Coringa'. 'Risada estranha, personagem nada enigmático, previsível. Matou, perseguiu e agiu como se espera de um psicopata. 'Ele pouco entende de Afeto Pseudobulbar. Talvez aí esteja a análise imperfeita. Até onde vai a psicopatia aliada ao sentimento de revolta por não possuir tino para determinada profissão, por ter um passado obscuro; presente e futuro sem perspectivas? Ultimamente, a exigência do cônjuge tem sido sarrafo elevadíssimo. Aparente calmaria despida entre quatro paredes. De calmaria vão os loucos, os "normais", os tratados e em tratamentos. Todos, sem exceção, têm momentos de desajustes.

Vivam os normais desajustados, os loucos inofensivos, os bipolares que usam lítio! Vivam os doentes mentais que são tratados pelo Sistema Único de Saúde com remédios de primeira linha. Balela, conversa pra boi dormir! Primeira linha, no sistema? Toc/Toc/Toc. O SUS trabalha com medicamentos, para tratar de doentes com problemas psicológicos, psiquiátricos e neurológicos, com drogas mais baratas, exceto quando o paciente e sua família entram na justiça para requerer o direito de receberem determinados medicamentos, com justificativas pontuadas de médicos.

O SUS, seus volteios e precariedades, tem sido menos pior, no atendimento domiciliar, do que determinados planos de saúde. Pelas bandas de Santa, o sistema tem atuado na média do sarrafo. Mesmo assim, a droga Haldol continua em minhas piores elucubrações, com efeitos colaterais tenebrosos, como a síndrome de andar e falar feito um robô. Cérebro impregnado. Dá-lhe Olanzapina, diz o especialista do convênio que não tem a menor cerimônia em dizer que HALDOL (droga mais barata) é o que o sistema fornece, para quem padece de determinada patologia psiquiátrica. Olanzapina é de primeira linha; SUS não fornece. Marevan, outra droga ofertada pelo SUS, em detrimento ao Xarelto. Economia parva do sistema oferecer o primeiro anticoagulante (Marevan), para quem tem dificuldades colossais em se locomover até o laboratório, para fazer exame de sangue semanalmente.

Para o sistema, problema de locomoção de quem não anda, não tem equilíbrio de tronco e outras patologias é da família do enfermo e da enferma.

Marevan é mais barato do que Xarelto. Ponto! Além do mais, deve rolar algum trocado para um determinado laboratório fazer o exame semanal de sangue. Volto meus pensamentos para os dias em internação. Lamento saber que apesar do plano de saúde, a maior parte dos medicamentos prescritos foi de terceira linha. O hospital anda com o orçamento curto/ pernas quebradas. Convênio paga pouco. Sorria, você está tomando Quetiapina, Haldol e afins. Se quiser Olanzapina, a família compra...

Enquanto recordo o fato, Coringa assassina três jovens ricos delinquentes. Arma na mão de um cidadão, independentemente se doente neurológico ou não, na hora da ira é desgraça na certa! Chuva na tarde domingueira. Celular desligado. Não sei por que deixaram duas crianças entrarem no cinema. E a classificação indicativa? A responsabilidade de levar ou não crianças a filmes com cenas de violência é dos pais, diz o sistema. Sei que um pai saiu com o filho no meio do filme, diante de uma sangrenta cena de brutal assassinato.

Hoje vivemos alienados pelo planeta midiático. Ninguém vê ninguém. Ninguém presta atenção em ninguém. Nunca fomos tão abduzidos pela máquina. Difícil é ter saúde mental sob pressão. Difícil é ter foco na sua ferramenta de trabalho, deixando o celular de lado. Alguém está sempre repassando notícias ruins, boas ou inúteis para outrem. Alguém publica vídeo, foto; posta áudio em grupos sociais.

Quanto ruído de celular azucrina minha cabeça. Quanta mensagem não leio nem respondo. Quem muito quer mostrar, pouco faz. As brigas pela rede são colossais. Alguém sempre tem réstia de mágoa de alguém. Ninguém fica satisfeito com a recente conquista. Quanto mais; mais... Tudo vira vício, descalabro, briga, desunião, arrogância, inveja. Eita mundo virtual bonito e maldito! Paradoxo Baumaniano.

Nem tudo perdido, nem tudo volátil. Não sejamos pessimistas. O Natal se aproxima. Papai Noel é conto de fadas. Minha casa só tem espaço para obras e livros, nada de árvores nem luzes. Carrego luzes no peito. Saio do cinema com certa leveza, apesar do conteúdo realista e pesado do filme. Somos meio coringas, meio desajustados por falta de reconhecimento e respeito.

Rimos e choramos em determinados momentos da vida de forma compulsiva. E daí? Que esses risos e choros convencionais ou fora de convenções sejam respeitados, para convivermos em harmonia. Que Deus nos livre da patologia da psicopatia, da perversidade, da crueldade e da sensação de que cometer justiça com as próprias mãos é algo justo. Justiça com as próprias mãos é bizarrice.

Coringa é insano, é exemplo de uma sociedade e sistema de saúde falidos. Aqui em casa a andropausa e a menopausa sintonizadas. O riso mudo, o choro em constância; sem necessidade de ansiolíticos, antipsicóticos e excitadores, até que um novo coringa comece a agitar nossos pensamentos.


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