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CRÔNICA

O que se passa em sua cabeça?

Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 13/11/2019 às 22:20

Mente bloqueada. Chateação, aborrecimento. Essa fase da vida tem sido difícil. O mundo me desagrada, profundamente. A produção semanal vem esfacelada. Momento tenebroso. Chuva com raios invade a casa. Medo se intensifica. Cuidados intensivos à acamada. Um olho na matriarca, outro no céu. Pensamentos desconexos saem da voz sussurrante. Números e fragmentos de letras de músicas fazem parte de seu repertório diário. Às vezes, lúcida, às vezes, confusa. Não é pra menos, tenho me confundido com horários, dias da semana, nomes de pessoas, medicamentos, exames; nomes de associações, academias de letras. Cansaço psicológico. O corpo, no entanto, já se acostumou com os trancos.


Nem só de brisa vivem os poetas e artistas. Nunca fomos tão desvalorizados. Com que desarranjo vivemos? Suspeito que estão monitorando nossas publicações na rede. Tempos de censura, perseguição, mazelas... Volto minha atenção para quem me interessa. Olhar opaco, de desaprovação; cenho fechado. Canhota em atividade constante sem nexo. Creio que a expressão cerrada é tédio, insatisfação e revolta... Não sei o que se passa em sua cabeça. Não sei o conteúdo dos seus pensamentos, se estão muito desorganizados, desconexos, flutuantes ou em processo de organização... Não compreendo os danos cerebrais que ela sofreu, como não mensuro a capacidade de reação de seu organismo.


Acredito que também os profissionais da saúde se surpreendam com recuperações inesperadas de determinados pacientes. Medicina não é ciência exata, dizia meu saudoso amigo, Gilberto Madeira. A paciente executa comandos quando quer. Fico a mirar seu semblante; a pensar no seu passado de noites insones, vigiando minhas febres. Recordo sua voz afinada, cantando: "repito o que todo mundo diz: não é só casa e comida que faz uma mulher feliz" ou "que beijinho doce que ele tem, depois que beijei ele, nunca mais amei ninguém, que beijinho doce foi ele quem trouxe de longe pra mim, um abraço apertado, suspiro dobrado de amor sem fim”, ou ainda: "Vinte e cinco anos de veneração e prazer, Pois até nos momentos de dor, O teu coração me faz compreender, Que a vida é bem pequena para tanto amor".


Mergulho nas recordações, para segurar o tempo que, inexorável, escorre rapidamente. O vento varre as folhas que a chuva derrubou. A luz piscou duas vezes. Suspirei de tristeza. Olhei o livro de figuras coloridas em minhas mãos calejadas. Ela olhou 3 páginas, depois se enfadou, virando o rosto para a parede. Senti-me impotente. Fui até o guarda-roupa, tirei o piano de brinquedo da caixa. Nada. Fiz algumas contorcionices atrapalhadas. Cantei, declamei, pulei. Nunca tive tanta vontade de ser palhaça e psicóloga.


Ela fechou os olhos. Desliguei a televisão. A chuva tinha cessado. Guardei o livro e o piano. Sentei-me na cadeira ao lado de sua cama. Segurei as lágrimas que teimosamente insistiram em cair. Disfarcei. Disfarçar, pra quê? Eu estava fora de seu foco. Acho que minha companhia a desagradava. Enxuguei minhas lágrimas. Comecei a levantar meu corpo da cadeira. Ela levantou o braço, procurando minha mão. Olhou-me profundamente. Seus olhos eram os mesmos que cantavam em dias de domingo, ao pé do tanque ou preparando almoço para cinco filhos e marido. Pois é, o meu coração sabe, sente e compreende que esta vida é muito pequena para tanto amor.

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