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Crônica

A Culpa é do Sistema

Andreia Donadon Leal

Publicado em 07/02/2019 às 08:24

(Foto: Google Imagens)

‘O sistema caiu!’.
Diz o caixa.
‘De novo?’
‘Quanto tempo teremos que esperar?’
‘Justo hoje? Tenho que pagar a mensalidade atrasada do colégio da minha filha!’
‘Estou aqui desde que o banco abriu. Vou aguardar. Quem sabe o sistema volta?’
Bebê chora, mesmo mamando vigorosamente no peito da mãe.
‘Ei! E o plano B? Falta de respeito! Isto não acontece nas Europa!’
Grita um homem nervoso no final da fila.
Guarda sai de sua cápsula para apaziguar os nervos. Bebê começa a chorar ruidosamente. Clientes olham para a mãe-menina, que aflita e meio sem jeito, balança o filho. Em vão. Ofereço-me para segurar o bebê. Ela sorri aliviada, entregando-me de bom grado o menino, saindo para tomar água. Rosto miúdo, vermelho de chorar. Balanço-o vagarosamente; recito poesia, como se ele pudesse me compreender. Ele abre os olhos molhados, mirando intensamente meu rosto desconhecido. Choro vira resmungo, resmungo vira bocejo, bocejo vira sonolência. Devolvo o bebê dormindo, para a mãe-menina grata.
Homem volta a reclamar, depois de o guarda esclarecer os motivos de o sistema estar fora do ar.
‘Cadê o plano B? Vergonha! Estou cansado! Cansado, contrariado, irritado!’
Acho que ele vai chorar. Perdi a capacidade de lacrimejar com essas cenas. Gerente aparece, conversando gentilmente com o cliente alterado.
‘Meu senhor! Fique calmo! O sistema está fora do ar. Não depende da gente!’
‘E eu com isto? Quero saber onde está o manual?’
‘Manual do sistema?’
‘O senhor só sabe trabalhar a mando da máquina? Cadê a evolução do homem? Cadê a independência do homem? Nós não evoluímos NADA! Quando a máquina falha, senhor gerente, o homem para de pensar! O homem já não faz mais nada sem a máquina. Olhe para os clientes que estão aguardando. Ninguém conversa com ninguém. Olhos, atenção e dedos voltados para a máquina. Sinto falta da época em que sistema era só uma ficção política! Não é o manual do sistema! É aquilo que se faz com as mãos, que trabalha com as mãos e com o cérebro. O senhor já se esqueceu o que é manual? É o manual do homem!’
‘Compreendo senhor. Compreendo perfeitamente. Peço-lhe desculpas pelo transtorno. Se o senhor quiser voltar amanhã… Não posso garantir que o sistema vai voltar hoje’.
Homem abaixa a cabeça. Gerente observa silenciosamente o movimento. Olho o recinto; mais pessoas chegam. Aguardo pacientemente; não tenho motivos urgentes para me desesperar. Chego perto do guarda quase engolido pela cápsula. Penso como deve ser desconfortável ficar naquilo. Pergunto sobre o sistema. Ele me explica pacientemente que está fora do ar, desde que o banco abriu. Olho o relógio: 14:40. Fila aumenta vertiginosamente. Gerente permanece de pé, observando movimentação parada. Volto para meu lugar. Tento não ficar ansiosa. Paro de olhar o painel e as pessoas, que começam a culpar a máquina, o satélite, a falta de preparação do homem em exercer suas tarefas manualmente, em casos de emergência e pane no sistema. Estalo os dedos. Abro a bolsa. Procuro opção padrão ouro. Esqueci o livro em casa. Suspiro, começando a ficar exasperada. Miro o recinto. Sinto calor, apesar do frio. Homem continua no mesmo lugar, cabeça baixa, olhar perdido. Clientes prioridade aguardam esperançosos. Mãe-menina, passiva, sem atitude e iniciativa, segura seu bebê nos braços, olhando fixamente para nada. Levanto-me de supetão. Chamo o gerente:
‘O senhor sabe se o sistema voltará a funcionar?
‘Não tem como precisar, senhora!’
‘Compreendo! Se acontecer alguma coisa com o satélite, o sistema para de funcionar imediatamente. Ouvi o senhor falar sobre isto’.
‘Então, em que posso ajudar?’
‘Por que mais clientes estão subindo’?
‘Não posso impedi-los de subir’.
‘Mas o senhor não pode avisar que o sistema está fora do ar, e que se ele (o sistema) não voltar até as 16:00, todos serão convidados a se retirar? Não é questão de lei, é questão de bom-senso!’
‘Mesmo assim, não posso impedi-los’!
Respiro profundamente. Bebê volta a chorar. Quanto choro hoje, e meus olhos: nada! Mãe-menina se levanta abruptamente, saindo do banco. Olho para o homem que acompanha a mãe-menina. Fila grande, caixas imóveis… ‘O sistema não volta hoje. O banco não tem plano B. O banco não tem manual. O manual do homem é a máquina’!
Saio do banco com o coração aos saltos. Olho para trás, muitos clientes saem do banco também. Meu sistema lacrimal volta a funcionar, com o manual adotado pela mãe-menina, só aparentemente passiva. Aperta-me a saudade do tempo em que culpa do sistema era só uma forma de justificar inépcia política.

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