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Crônica

As linhas do meu coração têm perfume

Confira a crônica de Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 24/05/2020 às 04:30
Atualizado em

(Foto: Pixabay)

Dia chuvoso, frio; ora na estiagem, ora nublado. Esfria, esquenta. Difícil não ver ternura na divergência do tempo, no compartilhamento da inutilidade aparente dos móveis. Há ternura no desabafo textual alinhavado por letras, palavras e orações na carta envelhecida do adolescente. Perco-me na fala poética do autista. Volto o vídeo, repetidas vezes. “Sou péssimo de coordenação motora, mas muito inteligente”. Oro por ele e por nós de noite a noite, às vezes, perdida no condicionamento repetitivo da prece: senhor, tende piedade de nós; nos livre deste buraco negro! Inspiro um pouco de mofo, tédio e desordem de ideias. A inutilidade dos jogos de tintas nas telas me comove profundamente. Sem tecnicismo, a arte se faz livre no descumprimento do figurino. Vozes ao longe, gritadas, incompreensíveis, lembram-me a musicalidade simbolista das ‘vozes veladas, veludosas vozes’. Transpiro com frequência. Envelheci hoje, porque ontem não tive tempo de notar as primeiras rugas. Não me restringi ao rosto nem à pele. Eu deveria ter outras coleções de brinquedos quebrados; ter cumprido dietas ao avesso, sabotado planos milimetricamente engendrados...

O vento é fluxo sem destino, vagando entre gretas da casa. A musicalidade do silêncio tem sinais sonoros em emoções. Faço sessões de terapia dialogando com pássaros e osgas. A música ao longe me toma a atenção. Perco-me nos acordes afinados e desafinados. Sempre me encantei com a amizade fraterna das cadeiras com as toalhas de banho. Abajur sem luz toma brilho do porta-retrato vazio e sujo. Conferencio com o silêncio que me corta. Sou ponto minúsculo navegando distâncias invisíveis. Conspiro com janelas e portas, nosso confinamento diário. As cortinas compreendem o juramento de ‘até que a doença nos afaste do êxtase da convivência’. Dói-me a consciência lembrar da cadeira de balanço quebrada! De ter feito absolutamente nada para devolver-lhe o status quo. Minhas meias foram colocadas na fronha do travesseiro, para aquecer meus sonhos noturnos. Sonhar acordada advém da arte de: liberta-se do automatismo insano. Desabafos e segredos sempre foram guardados por trincos, chaves e portas. Eles nunca me delataram! Aparto dores com emplastros de folhas de chá de poesia. As aflições do ser humano são minhas aflições compartilhadas. Nunca neguei que me alimento de doses de brisa e irracionalidade para fazer poesia. Que razão há nos meus versos? Que razão maior há em não ter motivo para existir? Que razão mais armada e amada há de ser absolutamente ternura na inutilidade aparente dos móveis cobertos de poeira, na carta velha do adolescente apaixonado, de sentir cheiro do sol, da nuvem; de colocar meias na fronha do travesseiro para aquecer os sonhos? As linhas do meu coração têm perfume.


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