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Crônica

Inespecífico anoitecer materno

Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 21/03/2019 às 23:50

Mãe com as quatro menina (Foto: Acervo Pessoal | Andréia Donadon Leal)

No início de uma noite de inverno, duas figuras encolhidas se davam os braços, caminhando vagarosamente até o ponto de táxi mais próximo. Era uma noite de céu avermelhado com rasgos cinzentos; fria, apenas fria...

Era uma noite em que pessoas saíam apressadas do trabalho, das compras, da farmácia, da ginástica, das consultas médicas e odontológicas. Apenas início de mais uma noite de inverno... As figuras centrais caminhavam sem preocupações com afazeres ou compromissos pré-agendados. Eram perceptíveis alguns tropeços leves de uma figura idosa, talvez pelas pernas titubeantes, ou pelos pés que se irritavam com o sapato, que dizia que era o responsável pelos eventuais tropeços. Insistia que estava bem. Insistia que o calçamento era culpado pelos passos vagarosos. Insistia em destacar a coragem tatuada em seu peito, para driblar os piores vendavais, apesar da idade avançada. Insista em dizer que tudo tinha jeito, independentemente do caso. Insistia em sorrir, às vezes, gargalhar de alguma piada que fazia. Insistia em tomar banho, sozinha. Insistia em descer os degraus das escadas, sem ajuda. Insistia, e isto me deslumbrava peremptoriamente, no pó-de-arroz e batom vermelho. Insistia em pintar as unhas; passar creme no rosto. Insistia em cantar, e me comovia profundamente com sua voz vívida, límpida e afinada. Insistia que eu lhe tomasse a tabuada, só para se gabar que era craque, nestes cálculos matemáticos. Insistia ler em voz alta os livros das prateleiras do quarto, chamando-me para escutar sua leitura fluida e performática, dizendo que dava show em muitos que concluíram ensino médio ou superior. Insistia em tocar os dedos dos pés com as mãos, para mostrar sua performance física. E eu nem sabia, que este exercício indicava o grau de flexibilidade do corpo; o exercício de alongar os ombros, as costas e os tendões. Insistia em dizer que era forte, e isto eu sabia; sabia perfeitamente de sua força, de sua coragem, de sua vida dedicada à criação, à casa, à educação da prole. Eu sabia, como eu sabia de suas benfeitorias... Insistia em dizer que sempre foi forte, e isto eu também sabia há punhado de tempo.

Eu me agarrava naquele braço flácido e enfraquecido pelo tempo, no início da noite. Eu me agarrava naquele andar meio titubeante, às vezes, tropeçando junto. Eu me agarrava naquela vida septuagenária. Eu me agarrava em suas risadas e piadas, que às vezes, me causavam rubor. Eu me agarrava no seu olhar modificado com o tempo.  Eu me agarrava a seus pequenos gestos. Eu me agarrava em suas estórias e lembranças, quando vinham à tona. Eu me agarrava, insistentemente, em qualquer detalhe, sem me ater às relevâncias.

Continuávamos a ganhar caminhos, sem nos preocupar com horários. Ganhávamos a presença da noite, de céu avermelhado e opaco. Ganhávamos a companhia silenciosa e desconhecida de pessoas passando; de um pedinte de café, que teve sua noite premiada pela generosidade dela.

E continuávamos a andar, olhando vitrines; parando, andando vagarosamente; parando para ver o céu, as estrelas, as igrejas, os hotéis, os restaurantes, e os carros cruzando ruas... E continuávamos a ganhar caminho até o táxi; até a casa. Eu visualizando, disfarçadamente, seu olhar que ora se distanciava para algum ponto inespecífico,capaz de fugir a qualquer momento, sem se importar com quem estava conferenciando. Eu sabia que aquilo agora seria sua marca. Eu sabia que ela já não se importava mais com os rodeios da vida. Nem deveríamos, também...

Eu? Ainda me agarro nela, para me nutrir de sua alma materna, que ultrapassou e ultrapassa quaisquer desafios pelos filhos, na noite de céu avermelhado...

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