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Crônica

Ouvindo silêncios ...

Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 29/06/2019 às 08:29

Volume baixo na televisão. Músicas religiosas. Murmúrios, gemidos, espirros. Notívagos andam de um lado para o outro. Barulho de máquinas. Enfermeiras a percorrer leitos. Paciente do andar superior grita a pleno pulmões: Mãe, mãe, mãe! Cristo, tende piedade de mim. Vontade de subir para abrandar aquela voz agoniada.

Desvio a cadeira de rodas dos buracos, aclives e declives. Mal conseguia conduzi-la. Falta de costume, piso irregular. A que veste branco olha-me de soslaio; nervos consumiam suas entranhas. Perceptível ao mirar, discretamente, o andar duro feito marcha batida, mãos fechadas em punho, piscar contínuo de olhos. Poros transpiram cansaço, estresse e mau humor. Nem dó nem pena dela. Meu cansaço, perceptível; não esmoreço nem deixo o mau humor e o automatismo me consumir.

O terceiro elemento transpira amor, apesar de as caretas fazerem parte da expressão. Dor, incômodo e tédio explicáveis. Aguardo. Fui até onde pude, lendo páginas de ‘Uma Furtiva Lágrima’. Devaneios nos desfechos, fingimento de felicidade clandestina, no testamento literário da autora. Nada a me preocupar, agora, com memórias e legados. A leitura me enfadava. Recolhi sentimentos agourentos, espalhados no recinto. Nada de diário e anotações como se o mundo girasse ao meu comando. Feito grão de areia prossegui na contagem dos minutos. Retorna o ser, com rosto menos pálido, lábios relaxados, expressão de contentamento e gosto. Compreendo, sinto prazer. Ao nosso lado surge o poeta, sem aviso prévio. Uma semana ausente. Estaria se lamuriando por liberdade; a soltar suas liras compulsivamente por Marília.

Evitei-o, seguindo em frente. Melhor consternação: desprezo. Seguimos indiferentes, absortos em nossas demandas. Mãos lavadas com sabão neutro e higienizadas com álcool. O terceiro elemento na cama, olhos fechados, respiração profunda. Apago a luz. Saio. Caminho pelo corredor escuro e silencioso. Ele me acompanha, embevecido. Mãos nos bolsos da calça do terno antigo. Surge feito fumaça, ao sentir minha tristeza e apreensão impingidas... Tomás sempre me surpreende, incógnita, misterioso, a me mirar copiosamente. Suplico com os olhos, suas palavras poéticas. Ele entra em meus pensamentos, guiado por sua argúcia espiritual; sabia de minhas aflições e necessidades. Talvez por isto surge com frequência. Segura minha mão. Seus dedos gelados acariciam minha pele. Quantas vezes desejei sentir quentura neles... Olha-me comovido. Choro em seus braços, sem emitir gemidos. Sons chamariam atenção dos plantonistas. Não me incomodam, expressões estranhas, cochichos, olhares atravessados e disfarçados. Todos daquele recinto estranhavam meus gestos e monólogos. Nada veem. Caminhamos de mãos dadas. Ele, absorto em mim, eu no terceiro elemento. Soprou poesias... "Ouça minha voz, as ovelhas seguem a mim, a ti e a ela. Sejamos livres"... Liberdade é mera expressão linguística. “Liberdade é o fim desta vida, não é o sangue derramado nem a carne cortada que nos unirá, mas a luz do amor”. A luz nos esperava. "O espírito nos unirá numa só alma, depois que nos ferir a mão da morte, neste monte, ou noutra serra, nossos corpos terão de consumir a mesma terra. Na campa, rodeada de ciprestes, lerão estas palavras os pastores: Quem quiser ser feliz nos seus amores, siga os exemplos que nos deram, Dirceu e Marília. Prosseguiremos na estrada da poesia”. Respondo: senhor de meus cantos e encantos, onde foste morar? Longe de mim, do meu coração e de minhas vistas. Na praia dos meus pensamentos? Nas batidas descompensadas do meu peito arfante? Dirceu nada responde. Está marcado, cronometrado; a luz jamais se apaga das almas entrelaçadas pelo destino. Sorrio com tristeza. Frio do lado de fora. Encolho-me. Sento no banco de cimento. Ele acaricia meu rosto gelado. "Siga, se passar pelo fogo, continue o caminho sem olhar pra trás". Suspiramos. Nada a complementar, nada a lamuriar. Beija-me a face e os lábios, com suavidade. Retribuo. Levanta-me suavemente. “Frio ataca pulmões fragilizados. Vá para a quentura do quarto”. Detesto sua forma autoritária e seu sumiço repentino.

Volto, de cabeça erguida, rosto corado, ânimos florescidos. Abro a porta do quarto. Luzes apagadas, acesas. Ela esboça o primeiro sorriso para mim. Chama-me para junto de ti. Acaricia minha face. A vida, em seu olhar profundo, cala minhas lágrimas...  

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