Portal da Cidade Mariana

Terça Literária

QUE MENINAS POSSAM SER CRIANÇAS!

Confira a crônica da Terça Literária I por Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV.

Publicado em 25/08/2020 às 04:45
Atualizado em

(Foto: Pixabay)

Jogaram um punhado de farpas no céu enevoado de uma menina de dez anos. Quantos céus foram, são e serão violentados? O inverno se enfraquece em agosto, dia após dia; mas a tempestade no já violado universo lúdico da criança virou cena de julgamento de milhares de especialistas, mídia e fundamentalistas. Não sei se penso no efeito catastrófico da publicização do ocorrido ou no debate acirrado: se deve ou não abortar. Não sei se me pasmo com os ataques à equipe médica, responsável pelo procedimento ordenado pela justiça. Não sei se me pasmo com os aproveitadores da situação, que se lançam no sofrimento alheio. Não sei se me pasmo com os adoradores do ditado popular de que quanto mais lenha na fogueira, melhor. Não sei se me pasmo com o tamanho do trauma da criança, de sua família ou com o vazamento do ocorrido por quebra de sigilo. Não sei se me pasmo com a opinião estapafúrdia de que a decisão da justiça é criminosa. Não sei se me pasmo com as manifestações violentas de quem não tem NADA a VER com a vida alheia. Não sei se me pasmo pelos fundamentalistas que numa suposta defesa da vida (em quaisquer circunstâncias!) não se preocupam com a vida da criança violentada, ou das opiniões a favor da descriminalização do aborto.

Quantas crianças são vítimas de estupro no país? Pergunto-me. Quantas mulheres e quantos homens são vítimas de estupro? Pergunto-me. Quantas crianças e mulheres levaram a cabo a gravidez no silêncio? Pergunto-me. Quantas vítimas de violência sexual recebem tratamento psicológico e psiquiátrico para conviverem com o trauma do estupro? Quantas crianças nasceram de uma relação de violência? Quantas crianças nasceram de uma relação incestuosa? Quantas crianças que procriaram receberam acompanhamento especializado? Quantas pró-crianças debateram sobre a experiência de procriar outras crianças? Os fundamentalistas são mestres em responder estas perguntas e outras mais, baseados em vastas experiências discursivas moralísticas do que fazer ou não fazer.

Descriminalizar ou criminalizar o aborto? Pergunto-me. Tenho minhas convicções de que a decisão deve ser pautada nos preceitos judiciais com o consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu responsável legal. A sociedade não está autorizada a julgar ou a promover alardes sobre o assunto. Esses casos devem ser tratados sob a ótica do juramento do sigilo, tanto da justiça quanto dos profissionais da saúde que agirão nos procedimentos médicos. Chicote do corpo e da vida alheia é língua desgovernada! A ministra poderia ter consultado vítimas, especialistas, conselheiros; iniciar campanhas contra a violência sexual, mas não encaminhar sua equipe ao domicílio da criança, para convencê-la a não abortar. Expor vulneráveis é violação de direitos fundamentais. Fico a imaginar as inseguranças e conflitos vividos pela criança e sua avó, diante dos discursos da justiça, mídia, equipe médica, sociedade e fundamentalistas.

Quanta perversidade mora no mundo? Quanto pecado sobrevive? Quanta maldade habita os fundamentos do julgamento social? Sodoma e Gomorra foram destruídas por causa da maldade. A maldade não estava nas cidades, mas nas pessoas. De tanto ver triunfar a justiça em inúmeras decisões do judiciário, creio na competência das autoridades. A publicização e virulento protesto de extremistas contribuíram para o efeito catastrófico da desordem, do caos, da quebra de sigilo e invasão da privacidade.

Creio na bondade, no bom senso e na justiça. Que o céu da menina e de outras meninas possam voltar a se acender com os solares raios lúdicos das próximas estações. Que as meninas, antes de serem mulheres, possam ser crianças!


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