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Crônica

Resignação à ignorância

Confira a crônica de Andreia Donadon Leal - Mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 29/03/2020 às 01:51
Atualizado em

(Foto: Google Imagens)

O tom da prosa não é de louvor à sabedoria, mas de resignação à ignorância. Brotaram mais vírus por aí, fazendo novos cadáveres. Caixões ocupam quarteirões na Itália e na Espanha. O mundo desenvolve conceitos de isolamento social, para salvar vidas. Isolamento sem dessocialização. Socialização sem encontros. Afeto sem toque. Sublimação da proteção, abrindo mão das comemorações festivas. Crise, despreparo, histeria, desemprego, tematizam pronunciamentos oficiais ao Deus dará de medidas provisórias que matarão o povo de fome. Peste dos infernos, que desgoverno patético. Ninguém entende bulhufas. Faz frio, faz calor. Chove, estia. Pais brigam com filhos, filhos brigam com pais. Um senhor de oitenta sai de casa e caminha na sua pequena rua vazia. Barreiras montadas nas entradas das cidades. Fecharam por que, se não tem patrulhamento? Entram e saem na boa; eu vi. Pandemia e balbúrdia das autoridades. Lavar as mãos com água e sabão, compulsivamente. Auto-exame dos pulmões: respirar, prender a respiração por dez segundos, aconselha um profissional da saúde. Lá vai o idoso, se escondendo da polícia, no beco. Aproveito para respirar ao ar livre, enquanto espero no portão o motoboy que vem me entregar dois galões de água. Presidente encolerizado critica imprensa, governadores, prefeitos, internautas. Onde estão os belos discursos políticos? Nos anais das histórias de outrora, nas melhores lembranças de nossos alfarrábios. Que dó me dá de nós, meu Deus! Onde foi parar a sanidade do executivo? Superou todos os limites da irresponsabilidade e da insensatez! Panelaço do Brasil indignado salta das janelas e ecoa pelas mídias. Que dó me dá de nós! Tropeço na porta de casa. Cumprimento vizinho de longe. Confinamento e cooperação. Isolamento sem dessocialização. Contaminação em massa ouço do correspondente de Nova York. Mais mortes, mais infectados, mais desespero. Erguem-se hospitais de campanha nas capitais. O que vem por aí? Faltam materiais de prevenção. Não se encontram mais máscaras, luvas e álcool no mercado. Hospitais do interior não têm aparelhos de respiração. Ruas vazias. Homens, mulheres e animais domésticos em isolamento. Comércio fechado. Sistema de saúde em colapso. Na caixa do correio um bilhete diz: “Não podemos visitar sua casa nesse momento de isolamento social. Precisamos que você faça nossa parte no combate ao mosquito da dengue. Já temos mais de 30 mil casos de dengue em Minas Gerais neste ano. Dengue também mata!” Caminhão recolhe lixo. Abro a porta da varanda e lá de cima vejo um gato preto caminhando no passeio. Pássaros voam e pousam no emaranhado de fios entre postes. Por que tantos fios? Entro, fecho a porta. Liberta na minha clausura, pego pincéis, tintas e tela. Magenta macula alvo pano de algodão. Recrio lista de afazeres. Redes sociais: aliadas. Arte: salvação. O idoso que não ficou só na sua pequena rua retorna para casa no carro da polícia, feliz da vida com a atenção das autoridades. Digo a ele para não sair. Ele me responde com um gesto obsceno. Amanhã ele arruma um jeito de ludibriar de novo o filho. Mas simples e seguro é ficar trancado na caverna na esperança de que aquela luz distante seja a indicação de uma saída que nos leve de volta ao mundo real, solenemente ignorado. Mito puro mesmo vive a criança que diz: tia, vamos ficar aqui dentro, bem escondidas, que o vírus não nos acha!

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