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CRÔNICA

Ruminiscências

Confira a crônica de Andreia Donadon Leal, mestre em Literatura pela UFV

Publicado em 29/11/2019 às 07:39

Tenho ruminado muito ultimamente. Não sei exatamente o motivo de tanta ruminação. Vocês poderiam dizer que rumino demais, porque tenho tido tempo para isso, mas digo a vocês, prezados leitores, que não é bem assim. Talvez sejam ruminiscências – ativação de lembranças de fatos e histórias guardados na memória. 

Ando pelas ruas asfaltadas e outras de blocos devidamente assentados, na terra de meus antepassados. Diria que essa cidade, de certa forma, foi adotada e eleita por mim como minha terra, pois além de ter vivido maior parte de minha vida aqui; o tempo, maldito e bendito dono de todos os instantes, jamais conseguirá apagar de meus pensamentos, marcas e memórias imortalizadas pelo coração.

Percorro a pé, a rua que ladeia o Colégio Affonso Penna e a Capela Rosário dos Negros. A praça recém-construída ao redor da capela, com bancos de madeira sobre o tapete felpudo de gramas, encanta vista e me faz continuar a caminhada solitária, com olhos voltados para o estilo arquitetônico da capela Rosário dos Negros, que me lembra a proa de um navio suntuoso. Rumino cada vez mais, quando desço vagarosamente pelo passeio, ao lado do colégio Affonso Penna e visualizo a Antiga Cadeia, inaugurada no ano do nascimento do meu avô materno, Lindolfo do Carmo Ferreira. Rumino um pouco mais e paro, embriagada de lembranças, quando no final do século XX, presos destruíram grande parte da Antiga Cadeia, ateando fogo nos colchões. Eu e centenas de santabarbarenses fomos espectadores e testemunhas do ato de vandalismo e de revolta dos presos, que se debatiam com guardas e autoridades locais, para continuarem na Antiga Cadeia.

Ainda, no centro histórico de Santa Bárbara, chego à praça que adorna a Antiga Cadeia e a majestosa Matriz de Santo Antônio, estupendo templo oitocentista, reformado e reconstruído ao longo dos últimos séculos, por grandes artistas, como Manuel da Costa Ataíde. A Igreja de Santo Antônio foi considerada pelo Bispo de Mariana, Dom Frei José da Santíssima Trindade, a mais bela de todas em sua viagem pastoral de 1821. Paro, rumino sobre as coincidências dos nomes e nos acasos, se é que existem acasos! Moro, atualmente, na cidade de Mariana, e por coincidência, na Rua Dom Frei José da Santíssima Trindade, bairro próximo à toca do Zé Pereira, na última travessa dessa rua, nas antigas casas nomeadas de “populares”.

Esqueço as coincidências dos nomes e volto meu olhar para o Hotel Quadrado, recordando, por breve instante, o período de 1993, último ano em que trabalhei na sede da Prefeitura de Santa Bárbara, e visualizava diuturnamente, com tristeza inescrutável, a construção abandonada e em ruínas do Hotel Quadrado. São apenas tristes lembranças, pois, hoje, visualizo o belíssimo casarão em estilo barroco, agora primorosamente edificado e reconstruído. Viro a esquina do Hotel Quadrado, atravesso a rua e vou em direção à Antiga Estação Ferroviária. Dos apitos dos trens, dos acenos saudosos dos passageiros, do barulho frenético das rodas do trem nos trilhos, sobraram saudades e alguns trilhos, mesclados à restauração da Estação Ferroviária, que hoje, na plenitude do século XXI, foi revitalizada. Não sobraram ruínas, trilhos retorcidos, nem paredes descascadas e destruídas pelo tempo no patrimônio histórico da tricentenária Santa Bárbara de Minas Gerais, mas casas, prédios, igrejas e casarões que tiveram vida social pulsante e memorável para os santabarbarenses de outrora, e, hoje, guarda o brio e a opulência dos bons e velhos tempos, que não retornam, mas ficam registrados e imortalizados na memória do povo ou de pessoas simples, como eu, que rumina andando por essas ruas.

Eu sei, porque rumino demais e quando rumino, as ideias saem límpidas, naturais, poetizadas, do que os discursos improvisados ou preparados com meticulosidade, que a vida passa, os tempos mudam, mas o tempo não muda, continua o mesmo, mudando todos e tudo à sua volta; mudando pessoas, gostos, vontades, desejos, músicas, espetáculos, danças e por aí vai, eu ruminando junto com meu tempo de nostalgia e de ócio, enquanto a vida deixa os ruminados saudosos com seu ciclo contínuo, indomável e irretornável...

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